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Queimada

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Tenho várias lembranças de Brasília. Uma delas é das queimadas. A cidade comemorou seus 50 anos calcinada pela corrupção. Não consegui escrever, na época, uma exaltação à cidade que me abrigou criança e me viu crescer. Resolvi, então, rever minha lembrança das queimadas em Brasília e outros sertões.

Morei em Brasília a infância e um bom pedaço da juventude. Tenho no fundo da memória as imagens, os sons e os cheiros das queimadas. Frequentemente atravessávamos de carro um corredor de labaredas, pois o fogo havia tomado as duas margens das estradas. Mesmo dentro da cidade, lembro-me de ir do Iate Clube ao campus da Universidade de Brasília por uma rua, então deserta, quase todo o tempo com as duas margens em chama e, várias vezes passávamos por um túnel de fogo e fumaça.

Meus amigos e eu costumávamos fazer longas caminhadas, cerrado adentro, em áreas hoje inteiramente tomadas por construções. Passávamos por grandes extensões de cerrado primário. Nos períodos de seca, a adrenalina aumentava, pois entrávamos no mato sem saber se iríamos dar com alguma queimada. Lá, misturados àquela geração de pioneiros, aprendemos que existe, realmente, queimada espontânea, provocada por raios ou pelo calor. Mas vimos, também, com nossos olhos curiosos e atentos, que a maioria das queimadas era proposital. No Plano Piloto, o centro de Brasília, ateava-se fogo para ver o mato queimar. Hoje catadores de lixo, fazem fogueiras com o lixo sem serventia, ao lado do Palácio do Planalto, abrigo oficial da poderosa Presidência da República.

Quem conheceu o cerrado como eu, caminhando por dentro dele, sabe como ele é rico. Conhece a beleza espetacular de suas flores. A resistência heróica da canela de ema, solitária e verde em meio às cinzas, depois do fogo. Tem noção da quantidade de aves e mamíferos que ele é capaz de abrigar. Encontrávamos emas e veados com grande facilidade em nossas caminhadas. A última vez em que passei de carro por aquelas paragens, onde nunca havia passado sem avistar várias emas e, vez ou outra, veados adultos, não avistei um só animal.

Essas memórias das cinzas do cerrado de minha infância e juventude me assaltam a mente sempre que vejo mata ardendo. Em Brasília, andei pela terra calcinada, com a fumaça ainda saindo do mato e das árvores queimadas. Senti aquele cheiro de queimado, por horas seguidas. Nunca deixei de me espantar com aquele cenário de desolação, que marcava o compasso de nossas outras angústias. Via na queimada o símbolo daqueles tempos, de sonhos juvenis, de raiva com a falta de liberdade, o fogo ideológico queimando cada vez mais forte, quanto mais avançávamos na noite escura da ditadura militar. Aquele chão de cinzas, preto/branco/plúmbeo, ficou em mim como o retrato do Brasil que eu vivia com intensidade, perplexidade e desespero. O arbítrio queimava nossas esperanças e o fogo devastava o nosso campo.

Tenho outras lembranças de Brasília. Diante de um pôr do sol esplendoroso, me lembro sempre do céu inigualável do planalto. Talvez só na Mantiqueira, ali pelas bandas de Barbacena, onde o pintor Emeric Marcier disse que o entardecer tem cores e uma luminosidade que nunca viu em outra parte do mundo. Os dois são céus da minha infância. Ambos esplendorosos. Hoje, tenho o privilégio de ter um pedacinho da Mantiqueira, na reserva Brejo Novo, onde, nos finais de tardes de junho e julho, sempre volto às memórias e a Brasília olhando aquele espetáculo como se fosse ainda a primeira vez. Boas memórias, povoadas dos meus, destituídas das dores de muitas perdas.

A queimada é uma velha praga, como a corrupção. Monteiro Lobato fala assim da queimada, em texto com este título, em Urupês, sobre a queimada de 1914, na Serra da Mantiqueira: “terrível ano de seca foi aquele! O fogo lavrou dois meses a fio, com fúria infernal. O céu toldado, o ar espesso, o crepitar permanente das matas em chama, a fumarada invadindo a casa, os olhos a arderem… Um fim de mundo. E sempre notícias más, a toda hora”. Não eram diferentes as queimadas de minha juventude oprimida pelo regime militar.

Mais adiante, conta ele que a “Serra da Mantiqueira ardeu como ardem aldeias na Europa” (referindo-se à guerra) “e é hoje um cinzeiro imenso, entremeado  aqui e acolá de manchas de verdura – as restingas úmidas, as grotas frias, as nesgas salvas a tempo pela cautela dos aceiros. Tudo mais é crepe negro”.

Quem já tenha visto um cinzeiro desses, deixado pela queimada, deveria dar um momento de reflexão ao alerta de Monteiro Lobato: “ninguém cuida de calcular os prejuízos de toda sorte advindos de uma assombrosa queima destas. As velhas camadas de húmus destruídas; os sais preciosos que, breve, as enxurradas deitarão fora, rio abaixo, via oceano; o rejuvenescimento florestal do solo paralisado e retrogradado; a destruição das aves silvestres e o possível advento de pragas insetiformes; a alteração para pior do clima com a agravação crescente das secas… Isto bem somado, daria algarismos de apavorar; infelizmente no Brasil subtrai-se; somar, ninguém soma…”

Não foi só Lobato que se indignou com esse espetáculo que o Brasil vem patrocinando repetidamente em seus sertões. Muito antes dele, em Inocência, obra de 1872, o Visconde  de Taunay já falava da queimada e não da espontânea, mas da intencional.

“Nesses campos, tão diversos pelo matiz das cores, o capim crescido e ressecado pelo ardor do Sol transforma-se em vicejante tapete de relva, quando lavra o incêndio que algum tropeiro, por acaso ou mero desenfado, ateia com uma faúlha do seu isqueiro. Minando à surda na touceira, queda a vívida centelha. Corra daí a instantes qualquer aragem, por débil que seja, e levanta-se a língua de fogo esguia e trêmula, como que a contemplar medrosa e vacilante os espaços imensos que se alongam diante dela. Soprem então as auras com mais força, e de mil pontos, a um tempo, rebentam sôfregas labaredas que se enroscam umas nas outras, de súbito se dividem, deslizam, lambem vastas superfícies, despedem ao céu rolos de negrejante fumo e voam, roncando pelos matagais de tabocas e taquaras, até esbarrarem de encontro a alguma margem de rio que não possam transpor, caso não as tanja para além o vento, ajudando com valente fôlego a larga obra de destruição. (…) A incineração é completa, o calor intenso, e nos ares revoltos volitam palhinhas carboretadas, detritos, argueiros e grânulos de carvão que redemoinham, sobem, descem e se emaranham nos sorvedouros e adelgaçadas trombas, caprichosamente formadas pelas aragens, ao embaterem umas de encontro às outras. Por toda a parte melancolia; de todos os lados tétricas perspectivas”.

Este cerrado que arde na pena de Taunay já está lá para as bandas de Goiás e Mato Grosso, depois dos “campos de Miranda e Pequiri, ou da Vacaria e Nioac, no Baixo Paraguai”. Ali, onde, segundo ele, “começa o sertão chamado bruto”. Mas em nada difere a sua queima daquela que vivi em Brasília. E quantas vezes não andei também por aqueles sertões cerrados de que fala Taunay, já adulto, e me defrontei com o fogo e a fumaça.

Lúcio Cardoso também tratou com olho crítico a queimada. Na novela O Desconhecido, diz o seguinte:

“Nas terras enegrecidas pela queimada, as primeiras gotas tombavam surdamente. Nos restos fumegantes das plantações, longos penachos de fumo se esfacelavam ao vento. Nenhuma cor sobressaía dessa paisagem triste. Ao longe, dominando a pesada atmosfera, urubus giravam em torno de um animal morto à beira de um açude. Na água estagnada, essas asas cansadas se refletiam como a derradeira palpitação de uma vida impossível.”

Tenho lido defesas das queimadas, seja por uma suposta funcionalidade, como substitutas baratas de outras formas de limpeza e manejo de pastos; seja porque fazem parte da tradição campesina. Escutei pessoas com sensibilidade ambiental dizerem que não há alternativa, no Pantanal, se não queimar os caronais secos, até para evitar que o fogo tome as outras partes dos campos e cerrados. Ouvi, de uma bióloga preservacionista do Pantanal, a seguinte descrição do peão pantaneiro tradicional: “ele é pirotécnico, sai pelo campo, com o fósforo na mão, e, se deixar, ateia fogo em tudo”. Lobato diz o mesmo do caboclo que conheceu.

Agora, quando subo até o topo da reserva do Brejo Novo, em Minas, e diviso a morraria do comecinho da Mantiqueira, a frase de Lobato me soca o peito – “a Mantiqueira ardeu como ardem aldeias na Europa”. Não dá para aceitar qualquer argumento a favor das queimadas.

A primeira vez que ouvi um argumento contra as queimadas, eu era um foca muito jovem, tinha menos de 18 anos. Trabalhava na sucursal de O Estado de São Paulo, em Brasília. Fui cobrir a Operação Rondon, na Belém-Brasília, e alguém me disse que havia quem achasse que o fogo era bom, mas que a experiência em outros países mostrava que ele empobrecia a terra. Era preciso ensinar alternativas, para evitar que queimassem. Concordei de pronto. Continuei contra as queimadas e a mitificação da “sabedoria popular”, mas fiquei mais cético. Não basta educar o caboclo ou o peão. É preciso que a sociedade como um todo tenha regras e as cumpra. O Brasil terá que escolher que tradições devemos preservar e que tradições abandonar. Ando com o sentimento de que estamos preservando o que temos de pior e depreciando, abandonando e esquecendo o que temos de melhor.

É este o desafio que o Brasil terá que enfrentar, se quiser escolher um caminho de progresso civilizatório. Não teremos êxito, se continuarmos com desculpas para todos os nossos erros e acusando o passado por nossa insensatez contemporânea.
Há coisas que devem ser preservadas e outras que devem ser erradicadas. Nesta lista estão corrupção, trabalho escravo, racismo, grilagem, desmatamento e queimadas. Coisas que não se pode tolerar e toleramos.

No campo seco, a crepitar em brasas,
dançam as últimas chamas da queimada,
tão quente, que o sol pende no ocaso,
bicado
pelos sanhaços das nuvens,
para cair, redondo e pesado,
como uma tangerina temporã madura… (Guimarães Rosa – Alaranjado

Dá até para fazer poesia com o fogo que lambe os sertões, como Guimarães Rosa, fez, mas é de uma tristeza imensa. Como naquele poema de Drummond , como dói. E como dói ver Brasília envergonhada, perdida na fumaça cinza-vermelha das queimadas e no novelo grosso de escândalos.