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Ideologia, progressismo e equilibrismo

Por que se gasta tanto tempo discutindo o significado da apresentação das medidas de reforço do arcabouço fiscal e do que o ministro Fernando Haddad chamou de “reforma da renda”? Não vi um argumento técnico respeitável que demonstrasse alguma inconsistência entre uma coisa e outra. Vi uma clara distorção ideológica ao considerarem aumento de carga tributária a criação de uma modesta alíquota de 10% do imposto de renda para os ganhos não tributáveis superiores a R$ 600.000,00 por ano. Se a arrecadação dessa nova receita for igual à perda de receita da isenção do IR dos salários até R$ 5000,00 reais, como diz o ministro, é neutra, não há aumento de carga.

O anúncio combinado das medidas de reforço e da reforma da renda tem explicação política que não está contemplada nessas reações. A política econômica precisa se equilibrar em uma fina linha de viabilidade, limitada por quatro focos principais de pressão, do “mercado”, do governo, de parte do PT e do Congresso. A pressão do capital financeiro economicamente hegemônico e globalizado, chamado simplificadamente de “mercado”, é sempre excessiva e insaciável. A resistência dos ministros ligados ao centrão a cortes de seus orçamentos, também. A necessidade dos ministros de áreas sociais e ambientais de mais recursos é real e legítima. A pressão do presidente, expressando a convicção progressista de parte de seu governo, compartilhada pelo ministro Haddad, é óbvia, pois cada presidente precisa ter uma visão do governo para o qual foi eleito. A oposição dos setores mais tradicionais da esquerda do PT expressa desconhecimento das mudanças que estão ocorrendo no mundo, alterando o padrão da economia e das necessidades sociais. A correlação de forças adversas no Congresso Nacional é decorrência de uma crise aguda no sistema partidário que gerou o vazio ocupando pelos partidos do centrão.

O reforço fiscal, apresentado sem a reforma da renda, levantaria a oposição do PT. Um corte generalizado de gastos como demanda o “mercado” contrariaria a orientação progressista do presidente e parte de seus ministros, além de ter a forte oposição do próprio PT e dos ministros de áreas sociais, ambientais e infra-estrutura. Não passaria no Congresso. É pura matemática, não tem ideologia envolvida. E, pior, seria má política em um país tão desigual e com um contingente nada desprezível de pessoas carentes, pobres e miseráveis. O reforço possível, sem a reforma da renda teria oposição menos generalizada do “mercado” e dos ministros, mas sofreria a crítica do PT. Medida do governo que sofre crítica interna, entra fraca no Congresso e será objeto de mais concessões que a levariam a um ponto bem abaixo do “possível”. Nada satisfaz “o mercado” que, portanto, não pode servir de baliza na formulação de políticas públicas. Deve ser considerado, apenas, como um dado adverso da conjuntura.

Haddad tem que se virar nesse labirinto e encontrar uma saída. Quando a encontra, equilibrando uma parte dos interesses em jogo, porém sem perder a orientação social, tudo que não fez é considerado derrota política dele. Todos os ministros da economia sofrerão uma barragem nunca satisfeita de demandas de todos os lados. As exigências do volúvel e superficial mercado financeiro é um dado da realidade, o capital financeiro globalizado e hegemônico tem impacto sobre variáveis críticas da economia como o câmbio, a direção do fluxo de capitais e o investimento. Devem ser consideradas, porém sempre com uma robusta taxa de desconto.

O capital financeiro é ideológico e oscila entre o hiperconservadorismo e a ortodoxia. Nele há pouquíssimos agentes moderados ou que levem em consideração outros interesses associados à política econômica, sobretudo socioambientais. Movido pelo lucro de suas operações, só se interessa pelo desempenho da economia que beneficie suas posições. Medidas sociais são sempre vistas como “gastança” e “populismo”, substantivos que perderam o significado e se tornaram rótulos vazios aos quais atribui-se o que atende à conveniência de cada um. Move-se em manada, evitando que concorrentes façam demandas contraditórias.

Governos de coalizão precisam fazer acordos, principalmente, quando se discute o orçamento público. Governos de coalizão minoritários, como é o de Lula, sofre limitações muito mais severas, que exigem muita habilidade de negociação, que Lula e Haddad têm. Mas, como a maioria é do centrão, esses limites são muito mais estreitos, quando se trata da principal razão de ser do centrão, verbas e influência sobre o orçamento.

Bolsonaro cometeu dois crimes gravíssimos, tramar um golpe de estado e transferir a execução das políticas públicas ao Congresso ao permitir a criação do orçamento secreto. Ele não tinha interesse nas questões centrais de governo. Seu projeto era autoritário e medíocre. Foi o que abriu a porta para a maioria parlamentar do centrão.

Parte do acordo da coalizão é distribuição de cargos, de ministros e de setores que têm orçamento para gastar nas cidades. Se é preciso acomodar o centrão em ministérios e agências-fim, essa inesgotável busca de mais dinheiro para gastar é internalizada de forma descontrolada. Quando as coalizões contavam com partidos-centrais e partidos-pivô, como PSDB e PFL, no governo FHC, e PT e PMDB, no governos Lula I e II, esses dois partidos praticamente formavam a maioria e essa distribuição era mais parcimoniosa e controlada. Com a presença numerosa de partidos, numa coalizão impossível de vertebrar pela falta de partidos-pivô dominantes, o governo é praticamente refém das vontades do Congresso. Tem quer ter muito mais habilidade de negociação. Daí a insistência do ministro Haddad de, depois da negociação interna, onde já fez muitas concessões, apresentar o “pacote” aos presidentes da Câmara e do Senado, antes de torná-lo público.

É claro que as medidas são mitigadas as duas frentes, fiscal e de rendas, por causa dessas limitações. Tenho para mim que o ministro Haddad, na intimidade, concorda que seria melhor fazer mais. Porém, entre o melhor e o possível, há um abismo cavado por essas contrapressões. Uma lição que todos do mercado financeiro que passaram pelos governo conhecem de cor, mas não reconhecem quando estão fora do governo. Talvez por isso a maioria do “mercado” tenha apoiado o projeto de Bolsonaro. Fez vista grossa à gastança eleitoral conduzida pelo ministro da Economia, que consideravam liberal, apesar de toda a sua ação “populista”, uso aqui o termo no sentido do próprio “mercado”.