Uma breve resenha do noticiário no mundo na semana que se encerra mostra sistemas políticos emaranhados em problemas que eles criam para si mesmos. Uma sociedade insatisfeita e atemorizada, diante de problemas emergentes, sem ter a cobertura e as habilidades para enfrentá-los. Vivemos uma situação de incompatibilidade aumentada entre política e sociedade. Os políticos olham a realidade sempre pelo retrovisor. Nunca houve distância tão grande entre aquilo que preocupa os políticos e o desafio que as mudanças e tecnologias representam hoje para o povo. A sociedade teme e enfrenta o aqui e agora a ver governos cada vez mais disfuncionais e respostas serialmente inadequadas. No futuro distópico, surge um mundo de maioria sem emprego e uma minoria fechada em bunkers fortificados. Ou não? Temos outra saída?
A política, e muitos politólogos e comentaristas políticos, imaginam que o sistema político não está sendo testado nos seus fundamentos existenciais. Que as instituições, tais como existem, são capazes de dar respostas aos problemas novos que se multiplicam. E que tudo funciona satisfatoriamente. É uma forma de autoengano ampliado pela visão do mundo moldada por seus modelos formais e estreitos. O desempenho dos sistemas políticos é claramente decrescente em todo o mundo. Daí o desencanto com a democracia a ameaçá-la em toda parte. Na China, um híbrido autoritário de centralismo estatal e economias de mercado semiabertas, que muitos olham admirados como a solução, formaram-se bolsões privados e afluentes cercados por manchas de pobreza. Xi Jinping aumentou o grau de autoritarismo do sistema e é testado pelo surto de coronavírus (2019-nCoV). Ele já ultrapassou em letalidade a epidemia de SARS que assombrou o mundo em 2003. O descontentamento do povo chinês está a transbordar as muralhas repressivas.
A obsessão de Trump com a expulsão da Huawei das redes ocidentais de 5G, a preocupação com as pressões de Washington e com antenas parabólicas, no Brasil, são de uma rasura atordoante, diante das mudanças que o 5G permitirá. Não falo de novidades por vir. Elas são imprevisíveis e serão ainda mais disruptivas do que tudo que já experimentamos até agora na era digital. Imaginem uma tsunami se formando no horizonte e as autoridades costeiras discutindo se permitirão pranchas de surf no fim de semana ou só pranchas de body board. Pois é. O edital da licitação do 5G no Brasil está paralisado, porque o governo não decide entre proibir a Huawei como quer Trump ou adiar o futuro do país por mais um ano ou dois, para dar chance à Nokia de tentar espichar sua body board 5G para ficar igual à prancha de surf 5G da Huawei.
A ideia fixa de Boris Johnson com a saída da UE e um novo isolamento britânico chega a ser patética, diante do fato inexorável de que a economia global está prestes a se tornar mais integrada e mais distribuída, portanto mais descentralizada. Trump e Bolsonaro apostam na mesma moeda furada: substituir os mecanismos multilaterais de comércio e regulação, de fato rígidos demais para atender ao mundo volátil em que estamos, por um mosaico incongruente e internamente contraditório de acordos bilaterais. O contrasenso vem do uso de modelos convencionais de análise. Integração neles supõe um sistemão centralizado, vulnerável e de baixa eficiência, como nosso sistema de distribuição de energia elétrica, fadados a experimentar apagões seriais. A economia distribuída, novo estágio no avanço da globalização, levará a redes de suprimentos e produção mais descentralizadas, porém menos vulneráveis ao fechamento de um de seus nódulos. A velocidade milhares de vezes maior do 5G dará enorme agilidade às redes.
Os governantes não preparam seus países para o avanço. Aprontam tudo para mais uma crise do ciclo que parece interminável de crises de transição pilotadas por comandantes ineptos. Com uma agenda miúda, nem suspeitam do tsunami que se forma no horizonte mais próximo e que esperam vencer agarrados a suas pranchinhas de isopor. A pergunta é por quanto tempo as instituições políticas suportarão tamanho disparate, tanta incompatilidade entre as agendas políticas e a realidade em curso de altíssima velocidade.
É impressionante o descaso com as habilidades necessárias às pessoas para lidar com as novas realidades. As habilidades críticas estarão no campo da criação, da mimesis, da inovatividade. Pensar fora da caixinha.
Na era da criatividade, da qual a conectividade 5G será apenas a ponte ampliada, nos encontraremos, finalmente, com a inteligência aumentada. Não é coisa nova. Foi imaginada nos anos 1960, pelo pesquisador científico Douglas Engelbart, que trabalhava, então, no NACA Ames Laboratory que daria lugar à NASA. Em um relatório sobre aumento da efetividade humana criou este conceito, que depois foi se ajustando aos avanços da cibernética, impensáveis naquele ano. A ideia é simples, o avanço da capacidade de processamento dos computadores, de aprendizado das máquinas e da robótica, em algum momento, agora muito breve, vai superar a capacidade humana de cálculo e de realizar tarefas mecânicas, inclusive e principalmente, aquelas de alta precisão. É o que o ficcionista e matemático Vernor Vinge chamou de singularidade, em um artigo para o simpósio VISION-21, de 2021, no final de março de 1993, tomando o termo emprestado da física.
A inteligência artificial avançada será capaz de aumentar significativamente a capacidade humana de fazer muitas coisas complexas, enxergar o que não era capaz de ver com seus olhos e mesmo com artefatos digitais de imagens de agora.
Significa que perderemos o domínio das máquinas? Não. Elas continuarão máquinas e precisando de nós. E o que temos para oferecer a elas? Nossa criatividade e nossa capacidade de inventar novas possibilidades, nossa humanidade. As máquinas só podem ir até a fase da mimética na mimesis criativa. Elas podem copiar com precisão e aprender a fazer melhor o que copiam do que nós e da natureza. Mas falta-lhes a poiesis, a criação. O mais importante da nova era será a poética das coisas, a capacidade de especular, a insatisfação angustiante com o que somos e a busca incessante do que ainda não somos.
Eu pergunto. Tem algum fiapo deste tipo de visão na agenda dos políticos? Rodrigo Maia imaginou alguma reforma para nos habilitar a entrar neste mundo? Um ministro semianalfabeto na educação, que sequer sabe o que é mimesis e sequer suspeita que será tragado pela nêmesis social, pode guiar o sistema educacional para habilitar os jovens para este mundo? Alguém concebe o cenário, inverossímil até na ficção, de Trump convocar a NASA para pensar o que é necessário para o seu país ser líder na idade da inteligência aumentada, de continuar na ponta na era da criatividade?
Em livro recém-saído no Brasil com uma instigante conversa entre o sociólogo Zygmunt Bauman e o ensaísta Ricardo Mazeo, O elogio da literatura (Zahar), Bauman diz que a literatura e a sociologia são irmãs siamesas inapartáveis. Ambas têm o mesmo objeto, a existência humana e as interações entre as pessoas. Steve Jobs creditava o sucesso da Apple ao casamento entre a tecnologia e as artes. A literatura e as artes em geral, sobretudo as plásticas, incluído o design, a filosofia (uma arte especulativa na concepção originária) são essenciais para levar a humanidade ao bom aproveitamento da inteligência aumentada. Torná-la apta a aumentar a capacidade das máquinas com a criatividade humana e aceitar o aumento da capacidade de concretização das criações humanas por computadores e robôs. Com a inteligência aumentada seremos capazes de enfrentar os dois desafios capitais de nossa existência para evitarmos o Armaggedon. O desemprego e miséria em massa e a destruição da biosfera.
Estamos entre o apocalipse e um salto quântico da humanidade. O sistema político nos puxa para o primeiro. Só nos resta o nosso esforço coletivo e nossas artes para forçá-lo a mudar de rumo e arrebentar as correntes que nos impedem de saltar.
Publicado originalmente no Blog do Matheus Leitão/g1