Os franceses dizem da melhor safra de determinado vinho que foi “une bonne anée”, foi um ano bom. Lula já deve ter feito o balanço de seu ano. Provavelmente concluirá que foi um ano bom, porém incomparável aos de 2003 e 2007, início de seus dois mandatos anteriores. O presidente fecha o seu primeiro ano no terceiro mandato, com 51% de aprovação, de acordo com pesquisa do IPEC mais recente. Sua aprovação era de 66%, em dezembro de 2003 e, 65%, em dezembro de 2007, medidos pela pesquisa Ibope, cuja metodologia o IPEC herdou.
Por que foi um bom ano para Lula e para o Brasil? Para o Brasil, porque a maioria demitiu Bolsonaro no segundo turno das eleições de 2022. Foi preciso um terceiro governo Lula para deixar o passado golpista e o presidente inepto para trás. O episódio infame de 8/01 foi superado. Falta punir os cabeças e os financiadores. Terminamos o ano com a inflação próxima da meta, que não foi relaxada. Colhemos a aprovação da reforma tributária que, mesmo mitigada e parcialmente deformada pelos lobbies da elite privilegiada e seus caríssimos subsídios, ainda pode fazer alguma justiça distributiva e reduzir a desigualdade entre estados e entre pessoas. Não é um balanço completo. Apenas os destaques deste ano bom, sabendo que houve melhores em outras décadas.
Alguns destaques negativos diminuem a qualidade do produto saído da safra de 2023. O Congresso, com suas bancadas-miniatura e blocos partidários disformes, conseguiu pôr o governo nas cordas e aumentar seu controle sobre a execução orçamentária. O aumento da influência do Legislativo sobre áreas de competência privativa do Executivo reduz os recursos de barganha presidencial. A coalizão de Lula é minoritária. O centrão domina o plenário de bancadas medianas. A governabilidade se complica.
Paradoxalmente o Legislativo acabou aprovando medidas como o arcabouço fiscal que baliza a nova política macroeconômica de responsabilidade fiscal, apresentada e negociada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Tem lhe dado os meios para conseguir aumentar a arrecadação sem incremento significativo da carga fiscal, embora isentando os setores empresariais com lobbies mais fortes no Congresso.
O governo conseguiu restabelecer a credibilidade e a qualidade de políticas públicas essenciais na educação, na saúde, na economia e no meio ambiente. Na Educação, que ficou acéfala por quatro anos e houve retrocessos significativos, o país voltou a ter ministro e uma política educacional. Parte do legado negativo ainda não foi enfrentada. Na Saúde, dominada pelo negacionismo no governo anterior, o programa nacional de imunização foi retomado e aumentou o contingente de crianças e adultos vacinados. No Meio Ambiente, que atendia aos interesses do agro predatório, o desmatamento na Amazônia teve redução significativa. No Meio Ambiente e na proteção dos direitos indígenas a safra deu frutos amargos. Foi promulgada a lei que estabelece o marco temporal para demarcação de terras indígenas. O agro ficou fora do mecanismo de crédito de carbono. Legislação velha e atrasada liberando agrotóxicos sem critério, nascida em outra era, foi aprovada e promulgada com alguns vetos. Merecia, apenas, o lixo da história.
O marco temporal será judicializado. O Supremo Tribunal Federal será provocado sobre sua constitucionalidade. Já formou maioria pela inconstitucionalidade, mas haverá pressão pesada do ruralismo sobre os ministros da Suprema Corte. A nova administração ambiental, novamente sob direção da ministra Marina Silva, conseguiu reduzir o desmatamento na Amazônia de forma expressiva. Ainda está devendo uma política adequada ao Cerrado para evitar sua destruição e, com ela, a perda de mananciais que abastecem a segunda maior bacia hidrográfica do país. A luta contra o garimpo ilegal teve duas vitórias importantes, mas ainda não suficientes. O Supremo Tribunal Federal considerou ilegal a presunção de boa fé na comercialização do ouro. A Receita Federal implantou a nota fiscal eletrônica nas transações com o metal. As duas medidas melhoraram a capacidade de fiscalização das DTVMs que controlam este comércio. Mas o garimpo ilegal continua sua obra de destruição de terras, águas e vidas.
Fontes indígenas relatam o retorno dos garimpeiros à Terra Yanomami. Tem faltado persistência na ação governamental. Após a bem sucedida intervenção sanitária e alimentar na TI Yanomami onde houve evidente genocídio, a presença do Estado foi relaxada e o crime retornou. Os garimpeiros estão acostumados a este padrão de ação governamental, quando são expulsos de algum lugar, recolhem-se pela proximidade à espera da redução dos efetivos estatais e retornam quando a ação estatal não tem mais poder de dissuasão. Também no Vale do Javari, onde Bruno Pereira e Dom Phillips foram assassinados, a situação voltou a piorar. Nesta área, instalou-se complicado quadro de associação criminosa, na imbricação entre o narcotráfico e a pesca ilegal. A jagunçada deu lugar a facções organizadas.
Se considerarmos que o mais importante na política era debelar o golpismo, reforçar a democracia, isolar a extrema-direita e restabelecer a qualidade de políticas publicas centrais, foi um bom ano. Se considerarmos que, na economia, o mais importante era debelar a inflação, ter uma política de responsabilidade fiscal fora dos parâmetros da austeridade ortodoxa, capaz de selecionar o gasto de acordo com as necessidades sociais, beneficiando os mais pobres e retirando privilégios dos mais ricos, foi um bom ano. No Meio Ambiente, se o mais importante era debelar o desmatamento e remover os interesses predatórios do próprio ministério, do Ibama e do ICMBio, foi um bom ano. Se reconstruir a Funai a partir dos destroços legados pelo governo anterior e criar um sistema mais coerente de proteção aos direitos indígenas, dando-lhes mais voz, era o objetivo central, foi um bom ano.
Que 2024 seja um bom ano para todos e a safra que colhermos no plano coletivo e no pessoal não contenha frutos amargos.
Feliz Ano Novo para todos.