Eu assistia ao último jogo do Brasileirão, no qual o Flamengo ganhou o campeonato perdendo. Parece um oxímoro, mas no sistema de pontos corridos, é possível acontecer. Levantou a taça depois de jogar mal, o goleiro cometer o erro primário de indicar ao adversário que lado iria defender uma batida de falta. Escolheu a direita e levou um gol pela esquerda. Quando a partida terminou, gostei de não gostar do jogo e não me empolgar com o resultado. Em outros tempos diria, é campeão e isto é o que importa. Gostei de não gostar porque logo me enchi de culpa de ter passado quase duas horas assistindo a um jogo de futebol, como se vivêssemos tempos norm ais. Mas, não vivemos.
Estamos prisioneiros de uma tragédia sem precedentes, na qual, como disse Hanna Arendt, o impossível se torna possível. Não quero me juntar àqueles que consideram que vivemos momentos normais, marcados por alguns eventos muito infelizes. Não quero reproduzir o comportamento dos parlamentares brasileiros, que lutam para aparecer na foto com Bolsonaro, como se ele fosse uma pessoa normal. Ele não é. Deixarei os traços psicológicos e psiquiátricos para os especialistas da área. Ele é a encarnação do mal que nos aflige. É o nosso Fausto, infausto. Com o pacto da impunidade, que ajudou a eleger a atual direção do Congresso Nacional, obteve essa normalização artificial que, quando o país atinge inaceitáveis 1582 mortes diárias, não há vacinas e os hospitais bordejam o colapso, a Câmara se dedica a debater e fazer acordos em torno do aumento da imunidade que garante a impunidade dos parlamentares. No Senado, discutem a eliminação permanente das fontes de financiamento da Saúde, da Educação e da Ciência, oferecendo como consolação um modesto auxílio emergencial, por três ou quatro meses. Bolsonaro, em suas famigeradas lives semanais, faz referência mentirosa a suposta evidência de que as máscaras fazem mal. Onde estão as decisões sobre obtenção de vacinas, isolamento social compatível com uma taxa de contágio de 1,5? Onde estão as providências para aumentar o número de leitos de UTI nos estados perto do colapso hospitalar? Perdemos a capacidade essencial do espanto diante de tanto absurdo?
A filósofa Susan Neiman trata extensamente da natureza do mal em extraordinário ensaio sobre o mal no pensamento moderno. Ela mostra como os piores crimes podem ser cometidos por pessoas comuns. Pessoas de bem podem fazer muito mal a um grande número. O que dizer daquelas que não são de bem? Em seu ensaio, ela argumenta como, ao contrário do que abraça a doutrina jurídica dominante, o mal sem malícia, o mal sem intencionalidade pode ser um crime hediondo. Era disso que tratava Hanna Arendt, e não da isenção de culpa diante da ausência de malícia ou do desejo de praticar a maldade. Essa capacidade de normalizar o anormal permite, exatamente, fazer o mal sem a intencionalidade do crime. É dessa inconsciência diante do teor de maldade de seus atos que fazem de tantos parlamentares, empresários, magistrados e pessoas comuns os viabilizadores do mal, apoiando Bolsonaro e sua máquina de maldades, em troco de promessas parcas, muitas delas, vãs. A sedução do poder manejado com malícia os capturou numa rede de autoengano. Se é crime praticar o mal e nele perseverar, sem intencionalidade, o que dizer do mal cometido com a intenção de ofender, ferir, matar? O mal executado com ódio.
As pessoas cultas se vexam de usar termos como maldade e mal, como se fossem pueris ou piegas. Mas não são. A natureza da maldade humana, a possibilidade de ela se banalizar ao ponto de as maiores atrocidades serem cometidas por pessoas comuns que, na vida cotidiana, são vistas como pessoas de bem, é uma das questões cruciais para definir quem somos e quem queremos ser. Vivemos tempos anormais, com um governo que nos deseja o mal. E não podemos nos conformar com isso, achar que, fora uma grande tragédia humana e esses comportamentos desviantes de sempre, tudo vai ficar bem.
Mas é isso que essas pessoas que nos infligem tanto mal querem. Emma Goldman tinha razão ao dizer que os políticos prometem o paraíso antes da eleição e dão o inferno, depois. Como as famílias infelizes são cada uma infeliz a seu modo, cada época tem seu Fausto, que se deixa dominar a seu modo pelo apelo grandioso do mal. Hitler foi assim. Trump também. Bolsonaro continua a ser. Conta com a ajuda de tantos que tocam a vida como se estivéssemos em tempos quaisquer e olham para outro lado, quando se deparam com tanta malignidade.