A polarização política não é sempre ruim para a democracia. Há situações de polarização que equilibram a democracia. Quando a polarização gera impasse e paralisia, ou quando se radicaliza e é dominada por dois polos extremistas, passa a ter carga negativa e tende à ruptura democrática. A estagnação compromete o equilíbrio dinâmico da polarização democrática entre esquerda e direita, por exemplo, e leva a um realinhamento partidário, ou à ruptura institucional. Realinhamentos partidários surgem da superação das clivagens sociais ou culturais que determinavam a divisão da sociedade em dois blocos políticos diferenciados em seus valores, preferências e princípios de políticas públicas. Novas clivagens, derivadas de mudanças na sociedade, quando maduras o suficiente, podem servir de base a uma nova configuração política. O sistema partidário tende a mudar nesta nova direção e cria uma nova polaridade para organizar governo e oposição. Se, porém, as divisões forem marcadas por sentimentos confusos ainda, de desconforto e raiva com o estado da sociedade, o esgotamento das opções partidárias pode levar a uma ruptura com sérios riscos para a democracia.
A queda da República de Weimar é um exemplo claro desta trajetória disruptiva. O voto indignado, provocado pelo descontentamento com o statu quo, de motivações difusas e fragmentadas, agregou-se momentaneamente em uma opção aparentemente nova e renovadora. A Alemanha saía da hiperinflação, associada ao enorme sacrifício de pagamento de reparações da Primeira Guerra imposto pelas forças vitoriosas. Empobrecida e humilhada, encontrou na ira nacionalista de Hitler um caminho de mudança. Sacrificou a democracia no altar do ressentimento.
Nos Estados Unidos, em pelo menos cinco momentos diferentes de sua história, o realinhamento partidário permitiu a manutenção das regras do jogo e do bipartidarismo, em resposta à mudança das clivagens, das raízes dos conflitos sociais. Um desses momentos se deu na onda das mudanças nos anos 1920, que levaram ao crash da Bolsa, em 1929, e ao New Deal. O partido Republicano, até então beneficiário majoritário do voto negro, não acompanhou as mudanças nas demandas da população afro-americana, recusando-se a avançar na pauta dos direitos civis. Ao mesmo tempo, os Democratas no Norte do país defendiam e aprovavam novas oportunidades para a sua incorporação econômica e social. A clivagem racial permanecia determinando o voto negro, porém seus fundamentos mudavam. Antes, fora escravismo vs abolicionismo, até a guerra civil. Após a abolição, o racismo se tornou o principal vetor da clivagem política no plano racial. O partido Democrata no Sul era racista, e os Republicanos, nem tanto. A partir dos anos 1930, os negros migraram para o partido Democrata, que apoiava a rede de proteção social do New Deal, oposta pelos Republicanos. A migração do voto negro do partido Republicano para o Democrata mudou radicalmente a composição e o comportamento dos dois partidos.
No caso alemão, a polarização levou à estagnação e à ruptura, ao totalitarismo. No caso americano, o sistema passou de um equilíbrio dinâmico a outro, preservando o jogo democrático e o bipartidarismo. Num caso, a polarização foi disfuncional e levou à ruptura democrática. No outro, foi funcional ao admitir mudança política que absorvesse as novas clivagens da sociedade, mantendo a democracia.
A polarização disfuncional é aquela que promove polos extremos, radicalizados. A polarização extremada gera fuga forçada do centro para os extremos. A polarização democrática incentiva o deslocamento dos polos rumo ao centro, abrandando suas preferências mais radicais. Uma é centrífuga, a outra, centrípeta. No Brasil, a polarização PT vs PSDB foi funcional, organizando governo e oposição e forçando os dois partidos a buscar posições mais centrais. De um lado, o PT teve que admitir a agenda de responsabilidade fiscal e a se aliar a partidos de centro. Do outro lado, o PSDB foi desincentivado a mover-se demais para a direita, a ponto de abandonar suas pautas sociais.
A Bolívia, hoje, está diante desses dois caminhos. O lançamento da candidatura de Fernando Camacho à presidência pode levar a uma polarização extremada entre a extrema direita e os setores mais radicais do partido de Evo Morales, MAS. O mais provável, neste caso, será o conflito violento e o autoritarismo. Carlos Mesa, candidato de centro-direita, pode evitar a opção extremista. Se a polarização se der entre ele e a ala moderada do MAS, ou mesmo entre ele e Camacho, o processo político pode levar à restauração da democracia. A tendência seria os simpatizantes do MAS migrarem para Mesa, se o seu candidato não conseguir apoio.
No Chile, a polarização esquerda-direita mantém-se funcional, apesar do deslocamento para a direita da Democracia Cristã, tradicional aliada dos socialistas. Há consenso de que as grandes escolhas, se constituinte exclusiva ou mista, ou que quorum será necessário para aprovar o texto da nova Carta, por exemplo, ficarão para o povo decidir em plebiscito. Há divergências apenas sobre procedimentos e como será a representação na Constituinte, mas todos os lados estão negociando. O presidente Sebastián Piñera mantém uma atitude ambivalente, pedindo mais instrumentos de repressão, enquanto apoia o processo constituinte.
O Brasil pode se ver numa encruzilhada entre a polarização extremada e a polarização democrática. O PSDB deslocou-se para a direita e deixou o centro vazio. Tem em seus quadros alguns dos principais viabilizadores do governo Bolsonaro. A disposição do presidente é muito clara, pela radicalização extremada, buscando empurrar o PT para o outro extremo. As milícias digitais hidrofóbicas, orientadas por pessoas muito próximas ao gabinete presidencial, não deixam dúvida de que o objetivo é eliminar do jogo político todos os que são vistos como do “outro lado”. Um lado que não contém só PT, mas todos os que são identificados como “globalistas”, “comunistas”, ou “terroristas”. O PT tem alas extremadas que inspiram milícias digitais muito raivosas, a ofender e desqualificar setores democráticos e, inclusive progressistas, que se opuseram aos seus governos. Desde o final da eleição de 2014, a polarização no Brasil tendeu ao extremismo. O ápice foi em 2018, que rompeu o ciclo de polarização democrática que formava governo e oposição até então.
A democracia estará sob risco se persistir a polarização extremada. Lula pode evitá-la, se entender que a clivagem central neste momento se dá entre democracia e autoritarismo. Ela pode evoluir para a polaridade civilização vs barbárie. O inimigo principal é o autoritarismo. O país está sendo empurrado para ele à sombra das instituições e da lei. Neste caso, todos os setores democratas, precisam cooperar, independentemente de suas divergências políticas.
Originalmente publicado no Blog do Matheus Leitão/G1