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O Continente dos caminhos que se bifurcam

  • Categoria do post:Política

O levante das ruas no Chile foi uma surpresa. Ninguém previu a explosão de descontentamento e indignação que estimulou milhares de pessoas, estudantes, classe média e trabalhadores, a ocupar as ruas por semanas. O protesto persistiu, mesmo duramente reprimido, com cerca de vinte mortos. O presidente Sebastián Piñera, de direita, primeiro disse que estavam em guerra. A óbvia impossibilidade de um país estar em guerra com seu povo, o fez cair na real e se desculpar. É um erro recorrente de governantes tomar o governo pelo país, quando não chegam ao absurdo de se considerarem a encarnação do país, ou da pátria. É a mentalidade autoritária no seu ponto máximo de megalomania, bordejando a psicopatia. Piñera não chegou a tanto e recuou rapidamente do erro elementar. Pressionado pela permanência do povo nas ruas, mesmo sob brutal repressão, mudou o gabinete, anunciou nova política de orientação redistributivista, pediu à ex-presidente Michelle Bachelet, hoje Alta Comissionária para Direitos Humanos da ONU, para investigar as violações das forças de segurança. Mas as ruas queriam mais. A renúncia, ou uma nova Constituição.

Na Bolívia, as ruas também se levantaram sem aviso prévio contra a tentativa de Evo Morales de ficar presidente por um quarto mandato. Foi decisão ao arrepio da Constituição que ele mesmo patrocinou e em desatenção ao plebiscito de 2016. Ocuparam as ruas contra o continuísmo estudantes, com grande participação de secundaristas, pessoas da classe média e parte dos trabalhadores que apoiaram Evo Morales até então. Ele caiu, quando os policiais se amotinaram e se juntou aos protestos a Central Obrera de Bolívia, COB, retirando o apoio decisivo dos trabalhadores. Se tivesse ouvido as urnas de 2016, quando perdeu o plebiscito por 51,3%, não teria tentado um novo mandato. Evo foi eleito, pela primeira vez, em 2005, com quase 54% dos votos. Em 2009, foi reeleito com 64% dos votos. Em 2014, foi novamente reeleito com 61%. Evo deveria ter entendido os 48,7% do “sim” que defendia no plebiscito, como sinal evidente de perda da maioria e de popularidade em declínio. Mesmo sob acusações de fraude, os 47% que teria obtido em 2019 confirmariam a trajetória decadente do apoio ao presidente. O grito das ruas encorajou a direita liderada por Luis Fernando Camacho, os militares e políticos da oposição, entre eles o principal oponente de Evo Morales na discutível eleição presidencial, Carlos Mesa, a se unirem no golpe que o derrubou.

Piñera, no Chile, não renunciou, mas aceitou a convocação de um plebiscito para encaminhar a produção de uma nova constituição. No plebiscito, os chilenos deverão escolher se querem uma constituição redigida por uma assembléia híbrida, com representantes do Congresso atual e metade eleita especificamente para a tarefa, ou se preferem uma constituinte exclusiva. Tudo indica que a última alternativa tende a ganhar. Seria a escolha certa, de acordo com a experiência das constituintes que se seguiram à democratização na América Latina e, posteriormente, na Europa Central, nos anos 1980-1990. O espantoso é que o Chile, após décadas de governos de centro-esquerda, não tenha conseguido se livrar até hoje do entulho constitucional deixado pelo período Pinochet. Michelle Bachelet, no seu último mandato, quando também enfrentou um levante das ruas, tentou, sem sucesso, mudar a constituição.

Enquanto o Chile caminha para um momento constituinte, que retificará e renovará seu contrato social, a Bolívia segue em profunda crise institucional. O país beira a guerra civil, com a sublevação da região cocaleira, origem e base primária de Evo Morales, que não aceita outra solução se não seu retorno à presidência. Como isto não acontecerá, ou as principais forças sociais conseguem a pacificação e criam as condições para novas eleições justas, competitivas e corretas, ou o golpe se aprofundará, levando a um regime autoritário.

A Bolívia vive um momento político crítico, de ruptura institucional. O restabelecimento da normalidade só será obtido com novas eleições presidenciais, nas quais o MAS, partido de Evo Morales, possa participar. A crise se agrava porque Evo Morales mantém uma atitude ambivalente. Ora o ex-presidente se dispõe a trabalhar pela pacificação, ora incita a rebelião de suas bases. Sem o apoio dos militares que, está claro, já perdeu, este, chamado à revolta contrata um banho de sangue. A disposição repressiva dos que apoiaram o golpe está clara e já provocou pelo menos oito mortes. A presidente interina, Jeanine Áñez também tem posição ambivalente. Ora fala em negociação com o MAS, ora ameaça com punições a Morales e cassação dos mandatos do partido, provocando a exacerbação dos ânimos do outro lado. O MAS, cuja posição ultra majoritária, tem 2/3 da Câmara e do Senado, o torna um parceiro imprescindível na eleição, tem um lado aparentemente mais numeroso de parlamentares disposto a negociar. No Senado, as conversações já avançaram. Na Câmara, a liderança da maioria, até há pouco governista, é mais reticente. O grande dilema do MAS é o mesmo que aflige muitos partidos comandados por uma liderança pessoal muito maior que os demais. Falta-lhe um candidato competitivo nas presidenciais. O único da aliança que desferiu o golpe a defender uma posição de pacificação e neutralidade do governo interino é Carlos Mesa.

Mesa tem interesse na pacificação e na neutralidade do governo interino de Janine Áñez. Primeiro, ele é candidato. Se disputar eleições limpas e competitivas e ganhar do candidato do MAS, que não será Evo Morales, sairá legitimado das urnas. Segundo, ele sabe que Jeanine Áñez não tem poder para radicalizar ou pacificar por conta própria. Ela refletirá a posição dos militares e de forças políticas do golpe. Atitudes de radicalização, como o rompimento de relações com a Venezuela, a hostilidade ao MAS e a ostentação da Bíblia parecem ter clara influência de Luís Fernando Camacho. A admissão da necessidade de negociar e pacificar, respondem mais ao que pensam os militares. Não está claro que prevalecerá.

O Chile entrou pelo caminho virtuoso da negociação. O plebiscito e a escolha da Constituinte devolvem ao povo a palavra final na definição do caminho da conciliação democrática. A Bolívia hesita entre o caminho democrático, que devolveria ao povo a escolha do novo governo e sua plataforma, e a tentação autoritária. A América do Sul parece destinada a se encontrar recorrentemente em momentos políticos nos quais os caminhos se bifurcam.

Publicado originalmente nbo Blog do Matheus Leitão/G1