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As ondas de indignação

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As ondas de indignação estão de volta. As ruas explodiram em revoltas, nos últimos meses, em vários países, de diferentes continentes. Dois motivos imediatos estavam por trás desses levantes, ameaças de tirania, ainda que velada, e desigualdade agravada pelo sentimento de privação relativa, a sensação de estar sendo privado dos benefícios a que têm direito, enquanto outros grupos usufruem deles largamente. É um grau sociológico a mais no aumento da desigualdade quando, além da distribuição desigual da renda, do acesso a serviços de educação e saúde de qualidade e ao bem-estar padrão da sociedade, as pessoas vêm bloqueados os canais de mobilidade social. Este sentimento é mais doloroso para os setores trabalhadores que perdem os empregos estáveis e para a classe média. Junte-se a este ingrediente de injustiça social a capacidade de disseminação desse sentimento pelas redes sociais, permitindo que indivíduos se dêem conta de que ele é compartilhado, e a bomba de revolta só precisa de um estopim qualquer.

A primeira grande onda começou na Tunísia, em 2011, quando Mohamed Bouazizi, um vendedor de rua, ateou fogo ao corpo em protesto contra o assédio abusivo da polícia. As chamas foram o catalisador da revolução na Tunísia, que derrubou o ditador Ben Ali, e se espalharam derrubando governos no Egito, na Líbia e no Yêmen e provocando guerras civis na Síria, no Iraque, além da Líbia, cujo ditador Muamad al Kaddafi foi deposto e morto, e no Yêmen. Elas também incendiaram os sentimentos coletivos de privação de direitos humanos e liberdade na Jordânia, em Bahrain e no Kuwait. A Tunísia foi o único país que saiu democrático da Primavera Árabe. Em outubro passado, foi eleito presidente Kais Saied, um acadêmico que participou da feitura da nova constituição após a revolução. Teve o apoio quase unânime dos eleitores mais jovens, que fizeram sua campanha nas redes e venceu com 73% dos votos. Sucederá o primeiro presidente eleito, Caid Essebsi, que morreu no cargo, em julho passado, aos 92 anos.

Neste ano, as explosões de indignação não ficaram contidas numa região, nem estiveram ligadas pelo contágio. Os egípcios voltaram às ruas contra o ditador Abdel el Fatah al-Sisi, que deu um golpe de estado contra o governo eleito após a ocupação da praça Tahir. O povo continua a pedir democracia e liberdade e foi brutalmente reprimido por al-Sisi, calando provisoriamente as ruas. Em Hong Kong, as ruas lotadas pediram a garantia da democracia, ameaçada pela China. O regime chinês em lugar de usar os militares que deslocou para lá, tem preferido perseguir e encarcerar as lideranças, que são muitas, para ficar fora das câmeras dos celulares e da imprensa. Na Argélia, os protestos de rua forçaram o ditador Abdelaziz Bouteflika à renúncia e a convocar eleições gerais para dezembro próximo. No Iraque, que nunca superou os traumas da ditadura de Saddam Hussein e da invasão dos Estados Unidos, comandada por Bush. No Líbano, o primeiro ministro Saad Hariri renunciou sobre pressão das ruas revoltadas contra a corrupção política e a destituição econômica. No Sudão os protestos levaram a um golpe militar contra Omar al-Bashir e o governo militar-civil marcou a entrada na democracia para 2022.

Na Bolívia, as ruas se dividem entre apoiadores de Evo Morales e os que se opõem à sua intenção de se perpetuar no poder. No Chile, a ausência de mobilidade social e a desigualdade incendiaram as ruas. O presidente, Sebastián Piñera, primeiro declarou guerra ao povo. Em seguida, ao ver a resistência dos descontentes à sua brutal repressão, pediu desculpas, demitiu ministros e se propôs a executar políticas sociais. O modelo privatista chileno, implementado a ferro e fogo na ditadura Pinochet, considerado exemplar pelos neoliberais de todo o mundo, estava furado. Programou imensa destituição social que os governos de centro-esquerda não conseguiram remediar e agora desestabiliza o governo de direita, originalmente entusiasta do modelo. No Equador, a revolta contra a desigualdade e o baixo poder aquisitivo encheu as ruas e o presidente Lenín Moreno decretou estado de emergência e transferiu a capital de Quito para Guayaquil. Mas, foi obrigado a ceder e retornou com o subsídio aos combustíveis. A privação dos indígenas, todavia, não se resolverá apenas com essa medida. No infeliz Haiti, o povo exige a saída do presidente Jovenel Moise, que reprime violentamente os manifestantes, mantém-se no poder e aceita o risco de gerar indignação crônica, projetando um futuro de conflitos intratáveis.

Na Espanha, a Catalunha continua incendiada pela negativa dos governos a, pelo menos, ampliar o estatuto de autonomia. O país caminha para a quarta eleição em quatro anos, para tentar, mais uma vez, sair do impasse que impede a formação de um governo majoritário. No Reino Unido, o povo sai às ruas contra a Brexit, a saída da União Europeia, e o primeiro-ministro, Boris Johnson, derrotado serialmente no parlamento, convoca eleições para tentar fazer prevalecer sua vontade, por meio de uma campanha populista e de intolerância aos imigrantes e à Europa. As pesquisas de intenção de voto têm errado muito por lá. BoJo, como é conhecido o primeiro-ministro, pode ganhar. Mas, os analistas apostam em outro parlamento sem maioria (hung parliament). Existe a possibilidade de um realinhamento partidário, com o crescimento dos Liberal-Democratas, que poderiam se tornar o pivô de uma coalizão com os Trabalhistas. Pouco provável, dizem os analistas. Mas, nesta era do imprevisto, já aprendemos que o improvável não pode ser descartado.

Não é mera coincidência temporal essa sucessão de ondas de indignação a derrubar governos, provocar repressões brutais e impasses angustiantes. Embora em cada país possamos encontrar um conjunto específico de causas, umas momentâneas, outras persistentes e mais profundas, há dois fatores comuns. A transição estrutural global se manifesta como uma sucessão de crises no interregno, quando há mais demolição do que construção. O conhecido desmorona e o novo ainda não está maduro o suficiente para emergir inteiramente. Agravam-se as desigualdades e aumenta a sensação de privação relativa. Há muito medo de que todos os empregos sejam devorados pela robotização. As restrições fiscais reduzem a proteção social dos já incluídos e não dão lugar para novas entradas. O mesmo ocorre com a representação eleitoral, ela alcança os já representados, mas não se abre aos setores sem grupos, riqueza ou influência. As democracias desandam, atolando-se na oligarquização e, pior ainda, na plutocracia. Os ricos ficam mais ricos e poderosos. As classes médias empobrecem e perdem representantes e poder. Os pobres ficam mais pobres e mais desrepresentados. Aumentam os riscos de repressão e tirania. Não é, portanto, um aumento de metrô, ou de combustível, ou mais uma prisão arbitrária que revoltam as ruas. A rebeldia está inexoravelmente associada às tormentas da transição, ao emperramento das engrenagens redistributivas, à corrupção e alheamento das elites.