A ruptura do padrão eleitoral
O sistema partidário brasileiro sofreu uma mudança importante com a eleição de 2018. Desde 2006 ocorre um processo de progressivo desalinhamento partidário, mas que ainda não havia alterado significativamente a ordem eleitoral. Estou convencido de que a eleição de 2018 marcou a ruptura da ordem político-partidária que prevaleceu após o realinhamento de 1994, na qual se consolidou o padrão de formação de governo e oposição no Brasil. Não se tem, contudo, indicações suficientes que permitam dizer se a mudança no padrão de voto e na correlação partidária de forças levará a um processo de realinhamento partidário mais estável.
Introduzi a hipótese de que as eleições de 2018 foram disruptivas no ensaio “Polarização radicalizada e ruptura eleitoral”. Posteriormente, utilizei essa ideia em várias análises em minha página sergioabranches.com.br. Argumentei que a mudança promovida pelas eleições de 2018 teve dois componente distintos. Primeiro, aumentou muito a fragmentação partidária e, associadamente, levou à diminuição significativa do tamanho das bancadas na Câmara dos Deputados. Este movimento promoveu mudança importante na correlação de forças entre os partidos e, portanto, na composição possível de coalizões de governo. Adicionalmente, neutralizou os partidos-pivô que dominaram as coalizões entre 1994 e 2018. O pivô central da coalizão de Fernando Henrique foi o PFL/DEM e a entrada mais tardia do PMDB, produziu uma coalizão com dos pivôs. Nos governos Lula e Dilma, o pivô central foi o PMDB e o segundo pivô o PT. Analisei essas situações em meu livro Presidencialismo de Coalizão: Origens e evolução do modelo político brasileiro. O segundo componente da mudança eleitoral de 2018 foi a descontinuidade no padrão de disputa bipartidária pela Presidência da República, entre PSDB e PT.
A mudança no quadro partidário da Câmara pode ser vista na figura abaixo. Ela mostra o efeito da ruptura eleitoral na correlação de forças partidárias, elemento decisivo para definir as coalizões possíveis de apoio parlamentar ao governo e de oposição. Como no Senado a mudança é mais lenta por causa da regra de renovação parcial dos mandatos, ative-me apenas à Câmara.
Os dois movimentos já apareciam em 2014. Naquela eleição, houve aumento da fragmentação e concomitante queda no tamanho das bancadas. Esta última se pode perceber na figura acima. A tendência de enfraquecimento do eixo de disputa presidencial já estava aparente desde 2006, pelo menos, mesmo com o PT reelegendo Lula e, em seguida, elegendo e reelegendo Dilma. É o que mostra o gráfico abaixo.
Houve progressivo desalinhamento partidário, que culminou na ruptura de 2018. Os percentuais de voto do PT e do PSDB, no primeiro turno, são cadentes. Em 2018, o PSDB é varrido da disputa, Geraldo Alckmin teve uma votação pífia, 4,76%, mesmo apoiado por uma coligação que, além do próprio, reuniu 8 partidos. Desempenho inferior ao de Mário Covas, em 1989, que obteve 11,51% dos votos, o terceiro mais votado, com uma chapa “puro sangue” de um partido ainda nascente. O PT, perdeu a presidência para Bolsonaro, sua primeira derrota desde 2002. O percentual dos dois partidos foi menor a cada rodada eleitoral. No segundo turno, ocorreu o mesmo, mas não creio que seja um indicador “limpo” para a preferência eleitoral pelo partido porque, na disputa forçosamente polarizada entre os dois mais votados, cada candidato no segundo turno atrai votos que não teria originalmente, daqueles eleitores que o consideram a segunda melhor escolha ou a menos pior das duas ainda em confronto.
Se houve, de fato, uma ruptura estrutural, que levará a um novo sistema partidário, não é ainda possível dizer. Só começaremos a sabê-lo em 2022. Se retornamos ao status quo, com um segundo turno entre o candidato do PT e o candidato do PSDB, será uma indicação forte de que foi apenas um desvio incidental do padrão, que continuaria dominante. Se este eixo bipartidário não se recompuser, a ruptura ficará mais evidente. Neste caso, é de se esperar que, no ciclo eleitoral de 22, ou nos subsequentes, se dê um efetivo realinhamento partidário. Haveria mudança durável na correlação de forças entre os partidos e teria início um novo padrão de competição eleitoral, tanto para formação do governo, via escolha do presidente, quanto da oposição, por meio de nova distribuição de partidos disponíveis para compor a coalizão de sustentação parlamentar do governo do vencedor.
Eleições críticas e realinhamento partidário
Permitam-me uma digressão mais conceitual. A teoria das eleições críticas e do realinhamento partidário tem uma longa história na ciência política. Uma trajetória marcada pela perda de prestígio acadêmico, porque estava centrada principalmente na experiência dos Estados Unidos. A ausência de mudanças relevantes, desde o realinhamento do New Deal em 1932, punha em dúvida a relevância e validade empírica da teoria. A eleição de Trump e a formação inesperada da coalizão de Biden talvez reavivem sua importância analítica para a política americana. Na política comparada, o modelo tem mostrado resultados sólidos e atuais.
Os precursores ou autores clássicos da teoria foram V. O. Key (1953), E. E. Schattschneider (1960) — cuja obra, The semi-sovereign people, aprecio muito até hoje — Walter Dean Burham (1970) e James Sundquist (1983). Para Burnham as eleições críticas teriam uma regularidade cíclica e produziriam realinhamentos de longa duração. Talvez essa hipótese sobre a natureza cíclica dessas eleições tenha sido o elemento mais controverso e que mais contribuiu para que ela parecesse carecer de sustentação factual suficiente. O problema da teoria — para muitos, mas não para mim — é que ela não se presta a análises com séries temporais. Sua capacidade explicativa se dá quando aplicada à análise de eleições singulares, exatamente por se tratarem de eleições críticas, que mudam o rumo do sistema partidário, portanto mais raras. O modelo é mais interessante quando aplicado na análise comparada de eleições críticas ocorridas em diferentes países. Schattschneider fixou sua análise na eleição de 1896, disputada pelo republicano William McKinley, que derrotou o democrata-populista William Jennings Bryan (não confundir com o conceito de populista de nossos dias). Esta foi a última eleição em que um candidato pôde chegar à Casa Branca apenas com o voto rural. Com a derrota de Bryan, o partido Populista desmoronou. Para Schattschneider, foi uma das mais decisivas eleições da história americana. Ela levou a um novo alinhamento partidário, que determinaria o curso da política dos Estados Unidos por trinta anos à frente. O realinhamento de 1896 seria o melhor exemplo para a substituição de uma linha de clivagens por outra. Apenas com o realinhamento “revolucionário” de 1932, a eleição de Franklin Delano Rosevelt haveria nova mudança radical na política pública americana com o New Deal. Mais conteporâneamente, Florent Gougou e Simon Labouret (2013) revisitaram a teoria, expandiram seu escopo e aplicaram o modelo revisto na comparação entre as eleições de 2005, na Alemanha, e de 2007, na França.
Sundquist reforçou a sociologia política subjacente à teoria das eleições críticas, ao mostrar que a estabilidade do padrão eleitoral estaria associada às conexões entre o sistema partidário e a estrutura social. Diferentes modos sociais levariam a distintas configurações dos sistemas políticos. Uma proposição que continua válida e atual. O desalinhamento partidário decorreria do processo de modernização (este sim, um conceito datado) pelo qual passavam os países no estágio avançado do capitalismo, focalizando, em particular, o aumento do grau de educação do eleitor e consequente ampliação do alcance e desenvolvimento da mídia. Outra contribuição que reforçou a tese do realinhamento foi de Roussell Dalton (1984, 2003, 2018). Segundo ele, os cidadãos se tornariam progressivamente mais bem equipados cognitivamente para definir suas preferências e passavam a ter os meios para buscá-las, tornando-se menos dependentes dos partidos políticos. Daí a noção do eleitor independente, interessado na política e comprometido com a democracia. Para Dalton (2018), o realinhamento político representaria a reorganização dos vínculos entre os eleitores e os partidos, que ocorreria movida por dois eixos de clivagens: econômica e cultural. A clivagem econômica teria a ver com as divisões em torno da intervenção do estado na economia, do gasto público, da estrutura tributária e da proteção social. A cultural, estaria assentada em valores, realtivos ao aborto, ao racismo, à imigração, ao meio ambiente, entre outros temas. Estes dois eixos separariam os conservadores dos progressistas.
Alguns anos mais tarde, Walter Burnham (1991) agregou a hipótese de que os realinhamentos eleitorais estariam associados às políticas redistributivas, seguindo a tipologia de políticas públicas de Theodore Lowi (1964). Como se sabe, Lowi definiu políticas redistributivas como aquelas que transferem recursos do topo para a base da sociedade e estariam associadas ao conflito de classes. As políticas distributivas não afetariam a distribuição existente de recursos públicos, gerariam menos conflito e seguiriam as linhas de influência dos grupos de interesses organizados. É fácil ver como esta clássica e inflluente tipologia conduz à associação feita por Burnham entre o conflito redistributivo e o realinhamento partidário.
A teoria das eleições críticas sofreu dois tipos de críticas mais duras. De um lado, Russel Dalton (2000) passou a argumentar que a ideia de eleições críticas estava ultrapassada e que o processo partidário se caracterizava pela decadência dos partidos e pelo desalinhamento do sistema de partidos. Processos que, de fato, se verificam em muitos momentos e na maioria dos países, principalmente no século 21. O mais ácido crítico da teoria foi, talvez, David Mayhew (2002), para o qual eleições críticas seriam uma categoria imprecisa porque a política nunca passou por períodos longos de estabilidade, a serem rompidos por rupturas eleitorais.
Não creio que a noção de eleições críticas seja tão ambígua ou historicamente insustentável, como dizem os críticos. Também, não vejo porque a noção de “momentos de ruptura” se contraponha, com vantagem, à de eleições críticas. Ao contrário, elas se complementam e uma especifica a outra. Momentos de ruptura são um processo mais geral e que não se aplica exclusivamente ao processo eleitoral. Sãos pontos de inflexão histórico-estrutural, definidos por processo disruptivos que podem se dar em várias dimensões da estrutura econômica, social e política, isolada ou simultaneamente. Esses momentos de ruptura, na dimensão eleitoral, decorreriam de eleições críticas, que marcariam a ruptura de uma ordem eleitoral, A ruptura inaugura pode um período de transição e elevada instabilidade da ordem eleitoral. O realinhamento, definindo uma nova ordem eleitoral, se daria a partir da reacomodação das forças que levaram à ruptura.
Não creio que controvérsias conceituais dessa natureza sejam frutíferas. A questão central é relativamente simplesmente: se há ruptura eleitoral, seguida de desalinhamento ou realinhamento partidário. A verificação de um momento de ruptura como esse importa para as conjunturas políticas que se seguem e para a configuração e estabilidade, ou instabilidade, da governabilidade democrática. Tensões políticas, como propôs Burnham, se acumulam, movidas pela insatisfação crescente e com o desencanto na democracia representativa, até o ponto de ruptura, levando ao desalinhamento/realinhamento partidário.
Há uma clara assincronia entre o processo social e o político-eleitoral. Examinei esta falta de sintonia, no momento presente das democracias, relacionada à revolução digital, em meu livro A era do imprevisto: a grande transição do século 21. Propus que a sociedade se digitalizava em velocidade vertiginosa, enquanto a política permanecia analógica e se digitalizava muito lentamente. Não é uma proposição muito distinta daquela segundo a qual o sistema socioeconômico se desenvolve, mas as instituições político-eleitorais e de formulação de políticas públicas permanecem essencialmente as mesmas, provocando deslocamentos, disfunções e desajustes cada vez mais visíveis, até que ocorram mudanças “não-incrementais”, ou seja, uma ruptura da ordem político-eleitoral Mayhew (2002) Martin (2002) Labouret (2014). Dalton (2018) argumenta que o processo de modernização continua a ser o motor da mudança, o que mudou foi a maneira de analisá-lo. Contemporaneamente, essa mudança é analisada como associada à globalização e seus impactos no capitalismo. A reorganização do sistema partidário seria uma resposta a esses macroprocessos, em particular, à perda de importância da classe operária na dinâmica do capitalismo e à emergência de novos segmentos da classe média. Realmente, a mudança histórico-estrutural em curso, como argumentei no livro, desorganizou a estrutura de classes, tem destruído ocupações e postos de trabalho, ao mesmo tempo que cria novas ocupações e formas de trabalho, predominantemente no que se convencionou chamar de sociedade do conhecimento. Mudanças que, no modelo de Dalton, corresponderiam a clivagens novas tanto no campo econômico, como no cultural. Mesmo em um sistema multipartidário fragmentado e que tenha maior plasticidade, os partidos não conseguem satisfazer às expectativas diferenciadas de um eleitorado altamente fluido.
Como argumentam Florent Gougou e Simon Labouret (2013) a teoria das eleições críticas e do realinhamento partidário vê a política eleitoral como uma sucessão de períodos de “política normal” e eras de realinhamento. No reexame da teoria, propõem uma tipificação das eleições críticas, portanto fora do escopo da “política normal”. As eleições de ruptura nas quais se daria o colapso da ordem eleitoral vigente, e as eleições de realinhamento, que inauguram uma nova ordem eleitoral e encerram o processo de realianhamento iniciado pelas eleições de ruptura. A ideia de “política normal” ecoa a conhecida análise de Thomas Kuhn, sobre as revoluções científicas. A “ciência normal” é aquela que se dedica a desenvolver e validar o paradigma científico vigente. As rupturas se dão quando o paradigma dominante é substituído por um novo. A ordem eleitoral (o paradigma) corresponde a uma configuração específica de competição partidária, levando em consideração não apenas as relações entre os partidos, mas também as relações entre eleitores e partidos. Após a ruptura e completado o realinhamento partidário, entra-se em novo ciclo de “política normal”, mas não de inércia. As características fundamentais da nova ordem eleitoral não se alterariam de forma relevante. Persistiriam as novas clivagens principais, o novo alinhamento dos eleitores e a nova correlação de forças no sistema partidário. Mas, forças e eventos de curto prazo poderiam levar a desvios do novo padrão eleitoral. Mudanças demográficas, deslocamentos populacionais, crises econômicas ou sociais, poderiam provocar mudanças eleitorais, porém sem a ruptura mantendo o padrão estabelecido.
Para concluir
Quando analisadas à luz da teoria, as eleições de 2018 foram eleições críticas. Como argumentei, elas romperam com o padrão eleitoral de formação de governo e oposição. Em outras palavras, levaram ao colapso da “ordem eleitoral” prévia. Nela, o presidente era eleito numa competição basicamente bipartidária, entre PT e PSDB. A representação parlamentar, por sua vez, era definida por uma disputa multipartidária fragmentada em busca de cadeiras na Câmara e no Senado com o objetivo de adquirir peso na formação das coalizões de governo. Neste confronto, o partidos buscam se qualificar como a primeira ou segunda minoria, de modo a se tornarem pivôs da coalizão. As eleições de 2018 levaram ao desalinhamento do sistema, a partir do qual nenhum partido tem força suficiente para operar como pivô da coalizão.
Em 2018, houve a ruptura do paradigma eleitoral e consequente desalinhamento partidário. Mas, só a partir de 2022, será possível determinar se está em curso o realinhamento dos partidos e dos votos, de modo a estabelecer uma nova ordem eleitoral. Se for este o caso, será possível afirmar que as eleições de 2018 foram eleições críticas de ruptura e as eleições de 2022 seriam eleições críticas de realinhamento, dando início ao processo de reconfiguração do paradigma partidário-eleitoral.
Referências bibliográficas
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