O julgamento da chapa Dilma-Temer pelo Superior Tribunal Eleitoral entrará no estágio mais importante no voto de mérito do ministro Herman Benjamin, nesta quinta (7). No debate das preliminares, ficou claro que dificilmente haverá decisão unânime. Aparentemente, em razão do calendário aprovado, os ministros não antecipam um pedido de vista. A divergência ficará centrada no uso pelo relator de evidências associadas aos depoimentos suscitados pelas colaborações premiadas da Odebrecht e dos marqueteiros João Santana e Mônica Moura. Os divergentes alegarão que houve extensão indevida do pedido inicial, ou que este era vago demais para abrigar qualquer fato ulterior.
Os argumentos introdutórios para contestar esta preliminar, já apresentados pelo ministro-relator, demonstraram que não passam de um pretexto débil para manter a chapa impune. O fundamento jurídico da alegação é frágil e, aparentemente, superado por decisões anteriores do tribunal, no curso deste processo. O questão de fundo é que todos os atos de financiamento ilícito são simultâneos, siameses. Todos têm origem no sistema de propinas acoplado a relações comerciais e industriais com a Petrobrás. O relator provavelmente adicionará elementos adicionais que fortalecerão esse desmonte da única via para desqualificar as provas de corrupção eleitoral. A diferença, aparentemente, é que os depoimentos da Odebrecht, tomados pelo relator e também arguidos pelas partes — principalmente PSDB, proponente da ação, e PT-defesa de Dilma Roussef — foram mais incriminadores. Além disso, ao mencionarem os marqueteiros, deram base legal para que também fossem inquiridos, fechando o círculo incriminatório das provas.
Como este é, nitidamente, um julgamento político tingido com cores judiciais, qualquer ministro pode usar qualquer pretexto com mínima tintura jurídica para votar contra a cassação. Alguns podem até votar contra a cassação em nome da estabilidade política. Mas estabilidade política é, exatamente, o que não temos e não teremos, antes que se esgotem as possibilidades constitucionais de responsabilização do presidente Michel Temer.
A essa altura, mesmo com as divergências já explicitadas, é impossível antecipar o resultado. É bem provável o cenário de decisão por voto de desempate do presidente do TSE, ministro Gilmar Mendes. Se a maioria isentar a chapa, agrava-se a crise e a justiça eleitoral perde ainda mais sua credibilidade já debilitada pela morosidade das decisões e pela impunidade dos crimes eleitorais da elite parlamentar, de presidentes e governadores. Se o tribunal cassar a chapa, haverá necessariamente recurso ao Supremo Tribunal Federal e crise se prolongará, agravada pelo aumento da incerteza.
Se o presidente Temer não aproveitar essa oportunidade para aceitar a decisão tribunal, que o estaria condenando por crime eleitoral, no qual é apenas um consorte passivo, perderá a oportunidade da saída mais honrosa e menos custosa para o país. Contribuirá mais ainda para o prolongamento agravado da instabilidade política.
A procrastinação do exame da ilegitimidade, por corrupção, das eleições de 2014, fragilizaria as instituições republicanas, com o objetivo de preservar o mandato de um presidente agônico. O processo político já está irremediavelmente contaminado pelos esforços do presidente para livrar-se dos julgamentos do TSE e do STF. O presidente, por isso mesmo, tornou-se refém de um parlamento em descrédito, para manter-se ao largo do alcance da Justiça. Hoje, Temer já não articula recursos para obter votos para reformas ou políticas do governo, mas para assegurar o apoio de pelo menos 171 deputados, que impediriam a autorização por dois terços da Câmara para que se torne réu por crime comum junto à Suprema Corte.
A desculpa das reformas já caiu por terra. Como disse o presidente do senado, Eunício Oliveira, as reformas não pertencem mais ao Executivo. Pertencem ao Congresso. Se este quiser aprova-las, pode faze-lo independentemente de quem esteja na presidência da República. Temer não tem mais autoridade política, nem moral para articular qualquer votação no Congresso que não seja aquela para protege-lo de processo no Supremo Tribunal Federal. Obteria uma anistia com prazo de validade limitado pela duração de seu mandato presidencial alto custo para o país.
Para isso, fará todo tipo de concessão e, ainda assim, sem garantia absoluta de que conseguiria impedir a autorização para o STF processa-lo. Isso só se saberá após a tramitação preliminar do pedido do Ministério Público, que ainda não o fez, até a decisão de pedir a autorização da Câmara dos Deputados. Nesse entrementes, a crise só se agravará. O presidente submeterá o país aos custos econômicos, políticos e de reputação internacional associados à instabilidade e à incerteza derivadas uma presidência sem condições de governabilidade. Se obtiver a blindagem parlamentar, governará todo o tempo sob suspeição de usar os poderes institucionais da presidência da República para obstruir a justiça em benefício próprio e de seus aliados. A inquietação social terá surtos recorrentes associados a decisões políticas que gerem inconformidade ou a eventos políticos mais aflitivos.
O Brasil, após todos os traumas recentes, deveria refletir coletivamente sobre um dado evidente: como é penoso o processo de afastamento ou neutralização de um presidente que perdeu o apoio social e vê sua coalizão se liquefazer. O presidencialismo tem uma rigidez intrínseca em relação ao cargo de presidente. Em princípio, ela se justifica como garantia da estabilidade da governança e da governabilidade. Mas, quando a governança enfrenta instabilidade decorrente de atitudes do detentor do cargo presidencial e, por isso, já não tem mais condições de governabilidade, essa rigidez passa a ter o efeito contrário. Ela gera a instabilidade, em lugar de evita-la. Mas, o presidencialismo não prevê, como o parlamentarismo ou o semipresidencialismo, saída para o dilema de um presidente disfuncional ou, pior, uma presidência agônica.
Das hipóteses que não ferem os preceitos constitucionais do estado de direto democrático para interrupção do mandato presidencial, a menos penosa e de menor custo para o país é a renúncia. Mas ela é uma decisão de foro íntimo, privado. Portanto, não é uma saída institucional. Ainda assim, o único caso de renúncia, o de Jânio Quadros, teve efeitos mais que traumáticos. Deu início a uma conspiração civil-militar que vitimou a democracia e os direitos humanos. A Argentina todavia, teve, na sua história recente, dois casos não-traumáticos de renúncia: Raúl Alfonsín e Fernando de la Rúa.
As outras duas hipóteses são lentas, penosas e traumáticas. O impeachment por crime de responsabilidade e o processo crime, pelo Supremo Tribunal Federal. Ambos dependem de autorização da Câmara dos Deputados. Já experimentamos dois impeachments. Hoje, diz-se que o impeachment de Fernando Collor foi rápido e indolor. Foi mais rápido, mas não foi pacífico. O Brasil parou, com escândalos que se sucediam, conflito político, manifestações de rua e muita instabilidade. Só não foi mais tenso porque Collor, afastado, recolheu-se à Casa da Dinda e dedicou-se apenas à sua defesa legal. O caso da ex-presidente Dilma Roussef foi mesmo muito pior. A presidente transformou o palácio da Alvorada em centro de resistência. O país já estava fraturado em dois pólos e essa polarização se radicalizou. Foi um processo mais penoso e mais demorado, que dividiu o país em duas narrativas sobre a história contemporânea: a da legitimidade do impeachment e a de golpe parlamentar-judicial. Ele ocorreu em concomitância ao crescimento da operação Lava Jato e à revelação de um quadro sistêmico e crônico de corrupção política.
Não tenho resposta para esse dilema de falência presidencial. Mas creio que é hora de se refletir sobre ele e sobre possíveis saídas. Isso vai muito além das regras eleitorais. Há duas propostas em circulação, a do parlamentarismo e a do semi-presidencialismo como na França ou em Portugal. Nenhuma das duas me convence. Vejo na primeira enormes dificuldades de desenho institucional para compatibiliza-la a nosso federalismo extenso e desigual e para assegurar mínima estabilidade aos gabinetes que permita a governabilidade. Na segunda, que já comentei em outro texto, do qual extraio algumas observações.
O semipresidencialismo seria, aparentemente, a solução mais ajustável a nossa tradição presidencialista e federativa, mas vejo nele também sérias dificuldades de adaptação. No semipresidencialismo francês, o presidencialismo majoritário se metamorfoseia em coabitação, na qual quem passa a deter o verdadeiro poder de mando é o primeiro-ministro, que representa a coalizão majoritária. Mas o presidente não tem todas as suas atribuições inteiramente esvaziadas. A coabitação é um modelo, como bem o caracterizou o diplomata e político Alain Peyrefitte, de “uma república na qual os dois personagens políticos do topo são parceiros e adversários”.
O regime vive entre dois ciclos. Quando há coincidência entre a maioria presidencial e a maioria parlamentar, dá-se o ciclo do presidencialismo majoritário, no qual o presidente domina as decisões políticas e o primeiro-ministro é uma figura em segundo plano. Quando a maioria parlamentar é de oposição, dá-se o ciclo da coabitação, na qual o primeiro-ministro passa a deter de fato o poder governamental e o presidente perde boa parte de sua autoridade. Mas, ele mantém um poder de veto residual significativo. Logo, se não há cooperação entre os dois, ou bem impasse é resolvido pela arbitragem da Corte Constitucional, ou o sistema se move para a paralisia. O presidente é, além disso, totalmente “irresponsável juridicamente”, exceto na hipótese extrema de alta traição. Não existe a possibilidade de impeachment. Apenas a renúncia. O primeiro-ministro só pode ser removido por um voto de censura do parlamento. Na coabitação, resulta da Constituição uma diarquia, um poder bifronte. Situação que é de uma ambivalência insolúvel.
Não estou convencido de que resolveria o problema da governança instável e dos perigos à governabilidade no Brasil. O centro do dilema político brasileiro não é o presidencialismo. É a coalizão. A necessidade, a dificuldade e o modo de formar coalizões. Necessidade, porque o descasamento que parece inevitável entre a maioria que elege o presidente e a maioria parlamentar que sai das urnas exige que o eleito negocie uma coalizão para poder governar. Dificuldade, porque a legislação partidária, a diversidade federativa, a forma de campanha e o método de converter votos em cadeiras promove forte fragmentação partidária. Se o presidente é fraco politicamente e não tem as aptidões necessárias para o exercício da “alta política”, ele é refém de quem, na coalizão governista, tenha essas aptidões. O modo de formar coalizões em um contexto de fragmentação partidária e déficit programático é o clientelismo, o toma-lá-dá-cá, a troca de favores entre partidos e eleitores e entre presidentes e partidos. E clientelismo custa caro, exige capacidade fiscal para pagar por todas as demandas e discricionariedade no gasto.
Esses argumentos valem como objeção também para o parlamentarismo. A instabilidade do gabinete poderia minar terminalmente as bases da governabilidade. Há um problema estrutural e comportamental subjacente. Nenhum sistema assegurará uma democracia estável se não criarmos fortes desincentivos às práticas clientelistas. Parte desses incentivos está, como apontam corretamente, os politólogos Carlos Pereira e Marcus André Melo, no fortalecimento dos mecanismos de freios e contrapesos. Principalmente os freios (checks) associados à ação do judiciário, à autonomia e profissionalização dos tribunais de contas e da justiça eleitoral, do ministério público e da polícia federal. Parte pode estar associada à maior descentralização do sistema federativo, das decisões sobre políticas públicas e do processo de extração e alocação de recursos. Parte, ainda, tem a ver com os mecanismos eleitorais, financiamento, campanha e voto.
Fico sempre, contudo, ainda sob efeito da visão sociológica que buscaria as raízes do clientelismo político em nossa estrutura social e não apenas em nossa arquitetura político-institucional. Não quero defender soluções específicos. Quero entrar em um debate que considero necessário, diante das claras demonstrações de que nosso modelo político, embora tenha evoluído significativamente na constituição da Terceira República, com muitos avanços de qualidade democrática, ainda contém um grau preocupante de disfuncionalidades.