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Falência institucional

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A decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se negando a cassar a chapa Dilma-Temer revelou as disfuncionalidades e defeitos de nosso sistema de pesos e contrapesos eleitorais. O reconhecimento unânime de que havia evidências de crimes gravíssimos, acompanhada do não recebimento da denúncia de que esses crimes viciaram a eleição mostrou mais que uma contradição lógico-jurídica. Os crimes não foram detectados em tempo hábil. Uma vez detectados e comprovados, não foram considerados por quatro dos sete ministros e, por isso, ficaram impunes na instância eleitoral. Em poucas palavras, é um sistema falido.

A primeira disfuncionalidade do TSE está na sua própria composição. Um tribunal de juízes itinerantes que produz descontinuidades recorrentes nos processos. Um colegiado no qual advogados atuam como se magistrados fossem, mas que, na verdade, mostram a lógica e o ethos da advocacia e não da magistratura. Não é trivial o fato de que, como advogados especializados em direito eleitoral se adquirem notoriedade e relações, que aumentam a chance de se tornarem ministros do TSE. Como ministros, ganham reputação e recursos de influência que lhes dão vantagens inegáveis, ao retornar à banca. É mais que impedimento eventual. É uma via institucionalizada e legal para a contaminação do processo pela ótica da advocacia, exercida do lado judicante da bancada. Aliás os votos dos dois ministros-advogados, fez justiça à advocacia, mas rasuraram a função precípua da magistratura. Advogados são fundamentais e devem ter direitos e prerrogativas plenas como garantidores do contraditório e do devido processo. Mas do lado das partes na bancada, não do lado dos juízes. Principalmente quando o julgamento envolve a tutela de direitos indisponíveis.

A palavra chave no julgamento da chapa presidencial era lisura eleitoral, que o tribunal deveria resguardar e que confere ao juiz poderes amplos de investigação. Poderes não para investigar qualquer situação, em desconexão com a petição inicial. Mas amplos o suficiente para alcançar evidências de fatos e atos diretamente relacionados à fraude alegada na inicial, ainda que tenham sido revelados posteriormente ao início do processo e, por isso, não pudessem ser nele ser arrolados. A causa do pedido era cristalina. As provas no processo diziam respeito a ela diretamente.

As justificativas da decisão por maioria de não acolher os pedidos e cassar a chapa condenam a justiça eleitoral. Pois o que se disse é que foram comprovados crimes de máxima gravidade e que estes devem ser apurados e punidos nas instâncias adequadas. Mas não poderiam ser considerados naquele julgamento. Ora, não é preciso muito esforço de argumentação para mostrar a justaposição entre crime eleitoral e crime comum, ainda que de gravidade incomum. Se a justiça eleitoral abdica de julga-los, decreta sua própria inocuidade.

No processo eleitoral, esse mesmo crime de dupla face, uma eleitoral e a outra criminal, teria como punição definida em lei a cassação do registro ou do mandato. No processo crime, a prisão. E ainda poderia haver implicações cíveis, passíveis, também, de processo em instância própria, levando a indenizações e outras penalidades.

Os tribunais estão cheios de processos tratando do mesmo fato, com implicações cíveis e criminais, correndo paralelamente nas varas pertinentes. Com a decisão do TSE, se ele fosse fechado hoje e a justiça penal punisse adequadamente esses crimes, a democracia ganharia.

A celeridade lembrada por aqueles como argumento para votarem em favor da impunidade eleitoral serviria melhor à causa democrática, se utilizada para não deixar as fraudes impunes, punindo-as em tempo hábil, de preferência antes da diplomação dos eleitos, evitando que os postos eletivos sejam execidos sem direito e sem legitimidade. No caso da chapa em julgamento, o mandato já ia para lá da metade e o titular já sofrera impeachment, estando no cargo o vice. Há, hoje, um número incontável de políticos exercício do mandato que usurparam o eleitor, por meio de fraude, competindo de forma ilícita e desleal e ludibriando o eleitor com caros artifícios de campanha financiados com o resultado da corrupção.

O TSE se dividiu entre duas agendas. Uma jurídico-política, que objetivava assegurar a lisura eleitoral, garantia da soberania do voto popular, defendida pelos ministros Herman Benjamin, Luís Fux e Rosa Weber. Essa é a agenda democrática.

A outra agenda, vencedora, é puramente política, foi articulada pelo presidente do TSE, Gilmar Mendes, de garantia da “estabilidade do mandato”. Visava a garantir a permanência de Temer no poder. Ainda que ao preço de desacreditar definitivamente a justiça eleitoral.

A cassação de uma chapa presidencial, ao contrário do que diziam os argumentos vociferados pelo presidente do TSE, não criaria instabilidade perigosa para a democracia. Seria uma punição exemplar, a indicar que, também na seara eleitoral, as elites serão punidas, não apenas a arraia miúda. À punição de grandes empresários e políticos outrora poderosos, presos em decorrência da Lava Jato por envolvimento ativo ou passivo no mesmo esquema de corrupção político-eleitoral em julgamento no TSE, somar-se-ia a cassação da chapa presidencial, por crime eleitoral. Essa decisão, que o TSE perdeu a oportunidade de tomar, fecharia o circuito de ações que constituiriam poderosos desincentivos à corrupção e poria fim à impunidade dos poderosos, em todas as instâncias.

Estabilidade é o que esta decisão não trará. As consequências políticas dessa leniência deliberada são muito preocupantes. Livre do TSE, Temer continua um presidente agônico, sob ameaça da justiça, agora criminal. Portanto, usará todos os poderes e influência residuais que lhe restam, para obstruir a justiça e tentar travar a Lava Jato. O ministro Gilmar Mendes tem investido contra o ministério público, contra as prisões preventivas e contra as colaborações premiadas. É tudo parte da mesma agenda política. Ela pretende neutralizar instrumentos que têm se mostrado os mais eficazes de que se tem notícia história do Brasil no combate à corrupção.

A agenda de reformas econômicas será usada como pretexto. Mas a única agenda hoje ativa no país é a de paralisar o combate à corrupção, blindar e deixar impunes os políticos sob investigação na Lava Jato. Um projeto que une todo o governo e uma boa parte da oposição. Usam os mesmos argumentos para desacreditar as investigações e os meios que as viabilizam, investem contra os mesmos protagonistas da Lava Jato. Cria-se um ambiente pernicioso, antipolítica, que pode facilmente voltar-se contra o próprio estado democrático direito.

O antivírus mais eficaz para evitar a total contaminação do tecido democrático por essa investida paralisante seria a ação ativa de lideranças políticas, sociais e econômicas mobilizando a sociedade a favor do estado democrático de direito. Tanto as lideranças já conhecidas, quanto aquelas que preferem discreta presença pública, mas têm demonstrado capacidade de persuasão e orientação fora dos holofotes da política.

Digo isso, não como uma peroração moral, ou normativa, mas em resposta ao diagnóstico, que compartilho, de analistas e observadores da política brasileira, de que vivemos uma crise de lideranças. Mas nós temos lideranças de qualidade, talentos em profusão na sociedade, que ainda hesitam em participar de forma mais ativa da cena pública.