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As duas faces da política americana: consenso e polarização no estado da União

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Joe Biden dividiu seu discurso sobre o “estado da União”, ontem à noite, em três partes distintas: a primeira sobre a invasão russa à Ucrânia; a segunda, sobre pautas progressistas dos Democratas, que não têm passagem fácil no ambiente polarizado; a terceira sobre temas nos quais Democratas e Republicanos convergem. Como manda a estrutura convencional dos discursos que abrem, ritualmente, o ano legislativo nos Estados Unidos, a abertura e o final devem ser fortemente motivacionais. Fortes, apelativos, emocionais. Biden fez tudo de acordo com o figurino.

O discurso foi particularmente revelador do que une e do que polariza a elite política americana. Há um consenso ideológico que cobre da centro-esquerda Democrata à centro-direita Republicana sobre o papel dos Estados Unidos na defesa “do mundo livre”. Esta doutrina ganhou força após a entrada dos EUA na Segunda-Guerra e se tornou mantra oficial durante a Guerra Fria. É a crença no “excepcionalismo americano”, que seria uma potência benevolente, nascida livre, fundadora da democracia e destinada a liderar o mundo livre em sua cruzada “democrática e antirania”. Nesta parte, foi fortemente aplaudido por Democratas e Republicanos. Os Republicanos já haviam combinado que aplaudiriam Biden quando ele falasse da Ucrânia, para mostrar a união do país na defesa do “mundo livre”.

A pauta progressista recebeu silêncio e vaia da ala Republicana do plenário. Biden defendeu o aumento da rede de proteção representada pelo programa de assistência à saúde; a redução dos preços de medicamentos para doenças como câncer e diabetes; medidas de garantia da liberdade de gênero; o direito de escolha das mulheres, sobre o aborto; e o Ato do Direto ao Voto, que visa bloquear o avanço das medidas de restrição ao voto aprovadas nos estados controlados pela direita Republicana; a reforma do sistema tributário (“nosso sistema tributário não é justo”) para fazer os ricos pagarem mais e isentar de impostos os mais pobres. Esta é uma agenda difícil de engolir inclusive pelos setores mais conservadores do partido Democrata e considerada insuficiente por sua ala mais à esquerda, que tem como estrela a jovem Alexandria Ocasio-Cortez.

Que não fique margem para engano: o apoio dos Estados Unidos às sangrentas ditaduras latino-americanas, a ditadores africanos, a regimes absolutistas no Oriente Médio, deixa evidente a falsidade por trás do que chama de “mundo livre”. A relação íntima, desde 1945, dos EUA com a Arábia Saudita, uma monarquia absolutista e misógina; ou o apoio aos 24 anos de tirania e terror de Islam Karimov no Uzbequistão; e aos governos fraudulentos de Heydar Aliyev (1993-2003), ex-KGB, e de seu filho Ilham Aliyev (2003-presente) são exemplos da hipocrisia das ações em defesa do “mundo livre” pelos Estados Unidos.

O discurso de Biden dissipa qualquer ilusão sobre a possibilidade de que se rompa, no curto prazo, o sólido consenso ideológico que propulsionou o imperialismo americano e agora inspira as tentativas de restaurar a hegemonia perdida. Mas o discurso não focou os ataques a Putin porque o establishment de segurança nacional continua a ver a rivalidade EUA-Rússia como o conflito estruturador da ação global de Washington. A Rússia não é uma potência da mesma grandeza que a URSS. Tem importância porque é uma potência nuclear, com uma economia média e um governante agressivo. Se o mundo caminhar para uma segunda Guerra Fria, seria uma polaridade EUA-China.

Com o colapso da União Soviética e o fim da era Mao na China, o recurso a essa doutrina ficou mais difícil e mais contraditório. O final da Guerra Fria embaralhou mais ainda os campos. A China rumou para uma espécie híbrida de socialismo de mercado politicamente autoritário. A Rússia adotou um modelo de capitalismo baseado na transferência de empresas estatais a pessoas leais ao regime, que começou com Boris Yeltsin. Daí surgem os oligarcas, um pequeno grupo de pessoas que controla em torno de 80% do fluxo da economia russa e usa o poder econômico para alavancar seu poder político. Putin radicalizou o modelo iniciado com Yeltsin e criou uma relação simbiótica com a oligarquia econômica russa.

A esquerda tradicional se confunde com as origens de lideranças como Putin, que comecou sua carreira na União Soviética e ainda imagina que a Rússia seja o contraponto ao imperialismo americano. Não é. Putin é um autocrata impiedoso com seus opositores, sustentado por um anel de interesses econômicos, militares e corrupção. Não está interessado no que os EUA fazem na região de influência americana. Seu problema é com a interferência dos EUA e da Europa na sua zona de influência. Tampouco o modelo híbrido de maoísmo, confuncionismo, centralismo autoritário e mercado regulado que Xi Jinping desenhou para a China representa uma alternativa progressista ao capitalismo globalizado.

A China mudou suas regras de sucessão para permitir maior longevidade no poder para Xi Jinping. O modelo que ele parece perseguir é mais pragmático, voltado para dentro, buscando lidar com as contradições geradas pelo crescimento das ilhas de afluência de mercado. Pretende equilibrar uma política de desenvolvimento para dentro, que implica em aceitar menores taxas de crescimento, embora mantendo sua posição no mercado externo, mas com produtos de maior qualidade e tecnologia de ponta, em lugar de produtos de preço baixo. Por isso, a China usará todo seu poder de pressão para mediar uma saída negociada. Não lhe interessa trocar o Ocidente por uma Rússia dependente, nem ajudar a derrubar Putin para instalar um regime mais simpatico aos EUA e à União Europeia. Até porque, Putin é imprevisível e todos temem como possa reagir imprensado de todos os lados.

Eu, particularmente, não considero um cenário de nova Guerra Fria, o caminho mais provável. O forte consenso que se formou contra a Rússia entre EUA, União Europeia, Reino Unido, países da Escandinávia, Canadá, Austrália e Nova Zelândia provavelmente não se repitirá em outras questões. Continuo a ver como possibilidade principal um quadro multipolar, organizado em zonas de influência mais definidas.