A aprovação da PEC que decreta fictício estado de emergência, em meio a todo tipo de trapaça constitucional, legal e regimental, é um novo marco de degradação institucional. As motivações são eleitoreiras e atendem à emergência eleitoral de Bolsonaro, não do país. A PEC não tem o endereço das verdadeiras emergências nacionais, representadas por 34 milhões de miseráveis, desabrigados e famélicos. Seus benefícios miram mais a classe média, que continua a usar seus automóveis por ruas cheias de moradores de rua atingidos pela miséria, as empresas de transporte rodoviário, que reduzirão seu custo com combustível, e os caminhoneiros independentes que receberão seu vale-voto.
As justificativas, tanto de Arthur Lira (PL-Alagoas), quanto de Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para aprovar a medida são mentirosas. Rodrigo Pacheco esgrimou a emergência como imperativo. Arthur Lira preferiu a demagogia e invocou o povo como destinatário da PEC. Logo o povo, essa entidade vilipendiada pelo governo que apoia a ferro e fogo. A mentira é o método preferencial deste governo e de seus aliados e a demagogia sua linguagem.
A oposição não soube sair da armadilha demagógica que aprovou a PEC. Vai tentar desacreditá-la na campanha. Bolsonaro vai bater bumbo para ensurdecer os eleitores de Lula que recebem o Bolsa Família rebatizado de Auxílio Brasil e temporariamente inflado pela PEC. É impossível dizer com precisão que terá sucesso e em que magnitude. Não há como estimar o impacto combinado da elevação do auxílio durante a campanha eleitoral e da queda da inflação média acumulada nas intenções de voto para Bolsonaro. Não dá para prever se a oposição conseguirá neutralizar o ganho de popularidade de Bolsonaro com o grau de conforto econômico que possa decorrer da mistura entre aumento do auxílio e queda da inflação. Eu não acreditaria em nenhuma estimativa. Há muitos fatores a considerar e nenhum precedente similar para usar como parâmetro.
Durante a pandemia, o auxílio emergencial teve um efeito positivo na popularidade do presidente, com uma defasagem que, se repetida agora, pode frustrar as pretensões eleitoreiras da PEC. Mas, o contexto era totalmente outro. A inflação estava muito mais baixa. Não havia ainda clima de disputa eleitoral. As circunstâncias agora são outras. A inflação muito mais alta, a penúria maior, o auxílio menor em termos reais. Também não é possível saber de antemão se o governo será mais competente e certeiro na distribuição do auxílio.
A oitenta dias das urnas, com a intensidade do noticiário sobre as eleições e a divulgação de pesquisas de intenção de voto, na TV, nas rádios, nos jornais e nas redes digitais, uma boa parte do eleitorado já começa a fazer comparações entre candidatos. Este ano, provavelmente, o voto terá um componente econômico forte. Serão, contudo, desprezíveis fatores não econômicos, como aversão a determinados tipos de comportamento, medo de violência, avaliação da compaixão pelos desvalidos? Provavelmente não. Podem ser fatores que reforçam ou relativizem a decisão puramente econômica. E o eleitor pode encontrar razões para dar o voto puramente econômico a Lula, diante da memória comparativa do bem-estar no período de seu governo em relação ao de agora.
Há ineditismos na eleição que se aproxima que precisam ser considerados na análise da conjuntura eleitoral. É a primeira vez que um ex-presidente disputa a Presidência com o presidente em exercício. A comparação não é apenas entre atributos pessoais, simpatia, credibilidade e promessas de cada um. Há dois fatores poderosos em choque: o recall, a memória do que o ex-presidente representou para os eleitores e seu entorno; e a avaliação do que o presidente em exercício tem representado para os eleitores e seu entorno. A intenção de voto em Lula e sua rejeição carregam boa parte dessa memória, positiva, de um lado, e negativa, do outro. A intenção de voto, a desaprovação do governo e a rejeição, embutem boa parte dessa avaliação de Bolsonaro, intenção de voto leva a avaliação positiva e a desaprovação/rejeição, a negativa.
É o quadro mais favorável a Lula e sua estabilidade desde dezembro que desenha a emergência eleitoral de Bolsonaro pretende enfrentar com a PEC. A mesma emergência que faz Bolsonaro correr atrás das mulheres evangélicas, entre as quais há número maior daquelas que aceitariam seu machismo e sua atitude de superioridade em relação a elas. Bolsonaro enfrentará uma campanha que se assemelhará a uma corrida de longa distância com barreiras. Lula, uma corrida de mesma distância, mas de resistência.
Bolsonaro terá que corrigir impressões muito negativas sobre sua pessoa e seu governo na maioria do eleitorado. Ele não só não pode errar, como terá que convencer grande quantidade de eleitores de que não fez o que realmente fez, não é quem realmente é, que tem empatia jamais demonstrada por quem sofre. Terá que convencer a maioria do eleitorado de que se governo foi bom e não o descalabro que tem sido. Apagar da memória do eleitor seu comportamento em relação às mortes na pandemia. Sua falta de compaixão acaba, porém, de ser reafirmada na reação ao assassinato de Foz de Iguaçu. Neste episódio, que ainda terá desdobramentos na mídia, Bolsonaro não teve uma palavra sequer de consolo aos familiares da vítima. Para piorar o quadro, tentou usar a palavra de irmãos do morto contra ele e despolitizar o crime de ódio. Ódio que Bolsonaro e seus sequazes insuflam na militância. Com as mulheres, Bolsonaro tem que apostar aquelas que concordam com a ordem patriarcal. No episódio do assédio na Caixa, Bolsonaro não censurou em momento algum o comportamento de seu aliado Pedro Guimarães. Claro, ele não vê problema no que aconteceu. A tarefa de Bolsonaro em 2022 é muito diferente da de 2018. Naquela campanha Bolsonaro disse o que pensava e manteve seu comportamento padrão. Na de agora, terá que fazer uma personagem que é o seu avesso e convencer a maioria.
Lula terá que defender a boa memória de seu governo e demonstrar para os que ainda não o apóiam que atualizou suas ideias. Terá que convencer a parte recalcitrante do eleitorado que se lhe der o voto de que fará um governo com as virtudes dos seus dois mandatos anteriores e sem os defeitos deles e do governo de Dilma Rousseff. Administrar a vantagem que já tem e avançar alguns pontos mais. É uma corrida de resistência.
São muitos os fatores imponderáveis para um e para outro. Há um percentual nada desprezível de eleitores que, em princípio, não pretende votar em nenhum deles. Há um percentual ainda de eleitores que pode mudar o voto. “Mas ninguém muda o voto de Bolsonaro para Lula, ou de Lula para Bolsonaro”, podem argumentar. Mas Bolsonaro se elegeu com votos que foram dados a Lula e Dilma. O voto não-ideológico é o que faz a diferença nas eleições presidenciais no Brasil. É voto de circunstância e, portanto, muito volátil. A volatilidade constitui um risco para os dois candidatos favoritos, embora a tarefa de cada um seja bem diferente.