O Brasil vive em crise política desde que se agravou o conflito que culminou no impeachment de Dilma Rousseff. As eleições de 2018 foram uma sequência da crise para a qual não ofereceram solução. Foram eleições disruptivas, romperam o eixo político-partidário que organizava governo e oposição e provocaram o desalinhamento do sistema partidário. Não promoveram, contudo, o realinhamento partidário. O sistema se tornou mais fragmentado e as grandes bancadas desapareceram. O realinhamento partidário terá que acontecer em algum momento e talvez seja um requisito necessário para que se resolva a crise política. Os dezesseis meses e doze dias do segundo governo Dilma Rousseff foram de crise intensa e grave. O governo Temer foi de crise e tensão todo o tempo. O governo Bolsonaro é um governo tenso, de crise ativa. O presidente tem uma atitude de confrontação permanente, tensiona as relações com o Legislativo e força as instituições ao seu limite.
A crise econômica mais longa de nossa história está na raiz da crise política, mas não é, nem de longe, o único fator detonador. O país vive uma evidente crise de lideranças. Os dois partidos que polarizaram as disputas presidenciais entre 1994 e 2014 estão visivelmente sem alternativas. Ambos enfrentam sérias divisões internas. O PT só tem Lula como liderança nacional viável. Não por acaso, sua agenda é dominada pelo #Lulalivre. É justo e compreensível. Mas, o partido mostra-se sem condições de propor saídas funcionais para a crise. Não tem sido capaz, sequer, de fazer oposição consequente a Bolsonaro. O PSDB está se deslocando para a direita. Já havia deixado de ser um partido social-democrático há muito tempo. Suas figuras mais arejadas o desejariam adotando uma agenda social-liberal. Mas, desde o alinhamento com o governo Temer, e, agora, sob o controle do governador de São Paulo João Dória, adotou uma postura liberal-conservadora, com ênfase no lado conservador. Hoje, nada o distingue do DEM. Por isso, a declaração do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, de que podem acabar se fundindo, estimulados pelo fim das coligações proporcionais, faz todo sentido. É sintomático que ele a tenha dado em reunião de filiação ao PSDB de Alexandre Frota, ex-bolsonarista expulso do PSL. Um marco da virada à direita do partido.
O que há de positivo nesse deslocamento do PSDB para a direita é a criação de um espaço político-partidário conservador que possa atrair parte dos apoiadores de Bolsonaro, afastando-os de uma liderança disruptiva e iliberal. Trazer forças de direita para o campo do respeito às regras democráticas é um movimento necessário para superar a crise política e evitar que ela se torne uma crise institucional, mesmo que mantenha uma agenda muito conservadora. O que há de negativo nesse deslocamento é que ele deixa vazios os campos liberal-social e social-democrático. O PT não se esforçou para atualizar sua agenda e se tornar uma opção social-democrática ou socialista-democrática mais ampla. Não há, no momento, opção capaz de conduzir o país no processo de metamorfose global, buscando um modelo progressista e cosmopolita de adaptação às mudanças estruturais e tecnológicas globais. Não é o centro que está vazio. É a centro-esquerda que está esvaziada. Os setores progressistas ainda politicamente viáveis tem se mostrado incapazes de identificar a ameaça da direita autoritária como o inimigo principal, que deveria unir todo o campo democrático, da esquerda à centro-direita.
Há quem imagine que as instituições estão funcionando suficientemente bem para evitar que a crise política afete o regime democrático. Não é o que penso. A democracia está em risco. A atitude do presidente do Supremo Tribunal Federal de politizar a presidência da Suprema Corte, com reflexos em sua agenda jurisdicional, representa uma grave ameaça ao equilíbrio republicano dos poderes. O alinhamento político entre Executivo e Legislativo, que compartilham atribuições legislativas, não põe necessariamente em risco este equilíbrio. Mas o Judiciário, especialmente a Suprema Corte, precisa manter-se equidistante dos dois poderes políticos, exatamente por ser o fiel deste equilíbrio. Há, aqui, uma fissura no quadro institucional que pode ter consequências graves, se não for contida em tempo.
As investidas do presidente da República contra o Ministério Público e a Polícia Federal, tentando submetê-los ao controle da sua vontade imperial enfraquece instituições essenciais. É particularmente preopcupante a ameaça à autonomia do Ministério Público, defensor dos direitos difusos, dos setores sem voz política. Todo o processo de desmonte de instituições de comando e controle, no campo ambiental, da auditoria financeira, da regulação econômica afeta diretamente o sistema de freios e contrapesos que vinha sendo penosamente montado no país. Sistema com resultados bastante positivos, diga-se, mais em algumas áreas do que em outras. Mas, as diferenças de desempenho seriam razão para aperfeiçoar, não para desmontar essas agências. No campo da regulação econômica, o desempenho tem sido cada vez mais negativo porque as agências perderam a autonomia necessária, ainda na gestão do PT. Nem o PT, nem Bolsonaro admitem agências que regulem, com autonomia, as decisões dos ministros e da presidência. É este, porém, o seu papel. Na qualidade de instituições do estado de defesa da sociedade, devem regular, ao mesmo tempo, o governo e o mercado.
A melhora do quatro econômico ajudaria a distensionar um pouco o ambiente político-social. Mas é pequena a probabilidade de que isto ocorra no curto ou médio prazo. A guerra comercial de Trump com a China prejudica a economia global e várias das empresas mais dinâmicas e inovadoras dos Estados Unidos, não por acaso as mais integradas globalmente. A China, desde a chegada de Xi Jinping ao poder, adotou um novo estilo de desenvolvimento, “voltado para dentro”, cujos objetivos são mais qualitativos do que quantitativos. Em lugar de crescer muito, pretende crescer melhor, enfrentando seus gravíssimos problemas ambientais, principalmente de poluição atmosférica e de seus rios e lagos, distribuindo melhor internamente as ilhas de afluência e dinamismo econômico. Ao mesmo tempo, Xi rompeu com a doutrina de Deng Xiaoping de abertura política e está implantando um padrão neomaoísta de governo. A repressão, a censura e o fechamento político são visíveis. Daí não se poder desprezar o risco de um massacre como o de Tiananmen em Hong Kong. A Alemanha, motor econômico europeu, está desacelerando, parte por questões internas, parte pela desaceleração chinesa. O Reino Unido move-se para uma Brexit sem acordo, que pode representar um golpe severo em sua economia já vacilante, ao contrário do que diz a mitologia nacionalista da ala brexiter dos Conservadores. A economia da França já aderna há algum tempo. A Itália, de baixo desempenho econômico quase crônico, bordeja a crise institucional com o golpe de mão de Matteo Salvini, que acaba de romper a coalizão com o M5S. Se as lideranças do M5S e do Partido Democrático, de Matteo Renzi e Nicola Zingaretti, não forem capazes de negociar um governo de união nacional contra o inimigo principal de extrema direita, o populista-autoritário Salvini, a Itália caminhará para eleições incertas e desestabilizadoras. Salvini deseja uma aliança com o ultranacionalista Fratelli d’Italia e com o partido de Berlusconi. Mas, como todo populista, ele é personalista e inconfiável. Só é sincero ao pedir aos italianos plenos poderes, como fez Mussolini.
O quadro internacional, portanto, aponta para crises políticas e tendências econômicas recessivas. No mínimo, é quase certo que se tenha uma conjuntura de crescimento global bem baixo em 2020. As tensões econômicas globais e o stress político-intitucional doméstico não desenham um bom cenário para o segundo semestre de 2019 e para o ano de 2020, no Brasil. A crise política não será superada e pode se agravar. As instituições serão testadas ao limite. Este quadro aparecerá com mais clareza no debate eleitoral no ano que vem. É inevitável que os conflitos e tensões do quadro nacional emerjam nos debates das disputas nas principais capitais. Dificilmente serão o principal fator de escolha dos eleitores. No Brasil, em raros momentos apenas os temas políticos nacionais foram dominantes nas escolhas eleitorais locais. As cidades enfrentam sérios problemas, em todas as áreas, e essas questões substantivas devem prevalecer na hora do voto. Mas, o debate político refletirá, em boa medida, a crise nacional.
Em síntese, a crise política que começou em 2015 vai continuar, com tendência ao recrudescimento, representando um teste de stress institucional sem precedentes desde a redemocratização. É o principal desafio para os setores democráticos da sociedade brasileira.