O maior dilema político-institucional do regime presidencialista é o como proceder quando um presidente é acusado de crimes comuns ou transgressões administrativas graves. O único instrumento disponível é o impeachment, um processo longo, traumático e político, embora juridicamente regulado. Nos Estados Unidos houve dois eventos que levaram ao impeachment. O famoso caso de Watergate, envolvendo o então presidente Nixon. O processo de impeachment só não foi aberto porque Nixon renunciou antes, para evitá-lo. O ex-presidente Clinton sofreu processo de impeachment por perjúrio, que foi arquivado pela maioria Democrata na Câmara dos Deputados. Muitos Republicanos também votaram pelo arquivamento. Agora fala-se em impeachment do presidente Trump por crimes eleitorais e, até, de traição, por seu relacionamento com agentes russos durante a campanha. É um tema complexo, controvertido e que está relacionado à divisão de poderes e aos freios e contrapesos, que são instituições centrais do presidencialismo republicano.
O Brasil já passou por dois impeachments, traumáticos, com regras diferentes para os dois casos assentadas pelo Supremo Tribunal Federal, marcados por diferentes tipos de arbitrariedades. Após essas duas experiências continuamos sem ter clareza objetiva sobre quando, como e por quê depor um presidente por meio do processo de impeachment.
Nos casos de Nixon e Clinton, a Suprema Corte dos Estados Unidos foi provocada a decidir se um presidente no exercício do cargo pode ser processado e condenado por crimes comuns. As decisões não ajudaram muito a responder a questão, diante de uma provisão vaga da Constituição de que o julgamento no caso de impeachment não pode ir além da deposição e que a condenação pode levar ao indiciamento, julgamento e punição por processo judicial. Para muitos juristas, a Constituição estabelece uma ordem temporal: o processo judicial só poderia ocorrer após a deposição. Para outros, ela apenas deixa claro que a deposição não afastaria a punição judicial.
Li numerosos artigos de juristas de várias universidades Yale, Harvard, Michigan, Georgetown, Chapman, Berkeley e encontrei as mais variadas posições. Há aqueles que consideram presidentes em exercício imunes a processos, aqueles que não vêm na Constituição nenhuma garantia de imunidade processual a presidentes, e muitas posições intermediárias. Entre os politólogos há a mesma variedade de posições. É uma garantia de que a possibilidade de processar Trump será inevitavelmente judicializada. Trump está cada vez mais enrolado por confissões e colaborações de seu advogado e assessores de campanha, tanto no caso de pagamento a atriz pornô para esconder sua relação extra-conjugal com Trump, quanto no caso das relações mais que promíscuas de seu time e familiares com os russos. Tudo durante a campanha.
Mas a ambiguidade da norma constitucional garante uma longa discussão jurídica e a decisão final ficará com a Suprema Corte, na qual Trump já assegurou maioria conservadora. Maioria conservadora, porém, não assegura julgamento de acordo com os interesses do presidente Republicano. Trata-se de uma questão de interpretação da Constituição.
Os professores do departamento de Direito de Harvard, Mark Tushnet e Mikael Klarman, não acreditam na possibilidade de processar o presidente. A única via seria o impeachment. Ambos consideram que as dificuldades estão na incongruência entre a visão originária dos Constituintes e a realidade política subsequente. Para eles, os Constituintes não pensaram em um sistema político com partidos nacionais e polarizados e, por isso, consideravam que o impeachment seria em grande medida imune às questões faccionais. Houve muita divergência entre os fundadores e a fórmula de compromisso, que para eles era inequívoca, pois remetia a referências por todos compreendidas na época, ao perder esses referenciais tornou-se ambígua e sujeita a interpretações. A começar pelos objetos do impeachment “altos crimes e contravenções” (high crimes and misdemeanors) frase que se tornou muito vaga na perspectiva atual.
O caminho seria uma nova emenda deixando esta questão mais clara. Afinal, três casos, em cinquenta anos, justificariam essa atualização constitucional. Como se fez, quando a regra não-escrita de apenas dois mandatos para presidentes foi desobedecida por Roosevelt e se fez emenda explicitando a regra. É o que propõe o politólogo Steven Levitsky, autor de Como as democracias morrem. Para ele toda regra tem ambiguidades e está aberta a interpretações. Mas, a Constituição dos Estados Unidos é singularmente curta e em muitos casos um documento vago. Não especifica as limitações do poder presidencial. Por isso, quando se abusa dessa indefinição da regra, ela deve ser substituída. O sistema aposta na autolimitação dos presidentes, argumenta Levitsky.
Trump não é capaz de autocontrole. Atropela diariamente todos os limites. Se não há concordância sobre a possibilidade de processá-lo, há consenso sobre o comportamento abusivo de Trump. Todos admitem que ele está levando o quadro político-institucional a limites extremos. Há ceticismo geral com relação ao impeachment. Ninguém aposta que a maioria republicana o aprove. Trump é popular entre os Republicanos, embora seja impopular entre Democratas e Independentes.
No Brasil, a Constituição é clara. Presidentes só podem ser processados se dois terços da Câmara autorizarem o processo. Como se viu nos dois casos em que o Supremo Tribunal pediu autorização à Câmara para processar o presidente Temer, a manipulação de uma maioria fisiológica, com abundância de lideranças também implicadas em processos de corrupção, o tornou inalcançável pelo processo judicial, enquanto estiver no cargo. Não é uma boa solução, no presidencialismo de coalizão, dar à Câmara essa prerrogativa. O impeachment também não é uma solução adequada em todos os casos. É político demais e a regulação judicial jamais será capaz de despolitiza-lo o suficiente.
O único caminho é terminar com o privilégio presidencial. É um resquício monárquico, uma forma adaptada às instituições republicanas da máxima absolutista “o rei não pode errar”.