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Crises políticas no presidencialismo de coalizão

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A mediação do Judiciário nos impasses entre Executivo e Legislativo é uma consequência natural da dinâmica intrínseca do presidencialismo de coalizão e da ordem constitucional republicana que estabeleceu a divisão harmônica de jurisdição entre três poderes. Portanto, a judicialização do processo de impeachment e a provocação ao Supremo Tribunal Federal para que se manifeste a respeito dos conflitos no interior do Legislativo e entre Executivo e Legislativo, são resultados esperados do funcionamento de nosso modelo político-institucional. E mais que um resultado esperado, é legítimo e está previsto na Constituição que o STF aja em determinadas circunstâncias como mediador, exercendo  poder moderador.

Logo, sua ativa participação na roteirização do processo, assegura que ele se desenrole dentro dos parâmetros definidos pela Constituição. Contudo, ao deliberar sobre o questionamento apresentado pelo PCdoB, demandando interpretação de procedimentos específicos em conformidade com a Constituição, o Supremo preocupou-se demais  com questões de  conjuntura e terminou por  errar na doutrina da democracia constitucional e desconsiderar provisões cruciais sobre a natureza constitucional das duas casas do Legislativo, ao atribuir seu respectivo papel no roteiro do processo de impeachment. Em decorrência, rebaixou a Câmara, interviu em assuntos internos e promoveu desequilíbrio entre as duas casas do

Parlamento, que contraria frontalmente a doutrina constitucional da democracia representativa.

Nada há de exótico, impertinente, inconstitucional ou antidemocrático na intervenção do Judiciário no limite de suas atribuições constitucionais, ou no recurso político ao mecanismo do impeachment diante da suposição de crime de responsabilidade pelo Presidente da República. São procedimentos legítimos e legais de nossa ordem constitucional. O impeachment é um processo eminentemente político, previsto e regulado pela Constituição e pela lei.

O que se deve discutir são as causas dos impasses políticos, que levam à judicialização e ao recurso extraordinário aos procedimentos de impeachment. Refiro-me a causas institucionais e estruturais, não às motivações conjunturais de personalidades políticas específicas.

A dinâmica política do presidencialismo de coalizão.

Após ler e refletir sobre o tema, conclui que mantenho as explicações que desenvolvi em meu artigo “O Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro”, para as origens do modelo político brasileiro e sua dinâmica político-institucional, de 1988. Um ano após publicar o artigo, escrevi algumas notas, para apresentação da tese nele contida em mesa redonda acadêmica, nas quais incluí esclarecimentos adicionais, relativos à relação entre o sistema partidário e o federalismo assimétrico brasileiro. Dizia nas notas que, no plano político-partidário, uma das características fundamentais desse “federalismo assimétrico” reflete-se na grande diferenciação dos sistemas políticos locais e regionais, que desdobram-se em um contínuo que varia do extremo de concentração ao extremo de fragmentação. Em decorrência, os partidos tendem a se organizar mais como confederações ou coalizões de grupamentos políticos estaduais ou locais, que podem se compor de forma distinta em cada eleição e na formação do “partido parlamentar”, isto é, da bancada efetiva de cada partido. O segundo ponto de esclarecimento, referia-se ao desafio político posto ao Presidente da República para formar e gerenciar politicamente sua coalizão e garantir a governança e a governabilidade. Organizar o governo com base em ampla composição de forças partidárias e regionais, em delicado equilíbrio, derivado das contradições existentes entre: a) a resultante nacional da correlação de forças político-partidárias e aquelas que estruturam os sistemas políticos regionais e promovem a divisão em facções de praticamente todos os partidos brasileiros; b) entre os diferentes partidos na coalizão, os quais, na melhor das hipóteses, comportam-se quase sempre como “aliados à distância e adversários muito próximos” e c). entre a agenda presidencial e as agendas retiradas da correlação de forças no Congresso, oriundas de movimentos eleitorais e configuração de interesses muito distintos. Em outras palavras, presidente e parlamentares são eleitos para promoverem agendas muito diferentes entre si e que devem ser, de alguma forma, compatibilizadas.
Caracterizei o dilema institucional brasileiro pela necessidade de se encontrar um ordenamento institucional suficientemente eficiente para agregar e processar as pressões derivadas desse quadro heterogêneo, adquirindo, assim, bases mais sólidas para sua legitimidade, que o capacitem a intervir de forma mais eficaz na redução das disparidades e na integração da ordem social. Sem uma solução eficaz para esse “ordenamento de equilíbrio” que não havíamos encontrado àquela época e nem agora, persistem os riscos inerentes ao sistema. E que riscos são estes? De instabilidade e conflito polarizado entre Executivo e Legislativo, levando o país à crise de governabilidade e ao limite da ruptura.
Na minha visão, essas explicações continuam rigorosamente válidas, embora já tenham se passado quase três décadas desde sua publicação. O modelo manteve suas características institucionais centrais e sua dinâmica. Alguns dos riscos de disfuncionalidade e instabilidade que identifiquei naquela análise, estão se manifestando hoje de forma bem mais profunda, extensa e grave. Disfuncionalidades agravadas pelo aumento espantoso da corrupção, que se tornou sistêmica e infectou boa parte dos sistemas estatal e partidário.
No artigo original, escrevi que o conflito entre o Executivo e o Legislativo tem sido elemento historicamente crítico para a estabilidade democrática no Brasil, em grande medida por causa dos efeitos da fragmentação na composição das forças políticas representadas no Congresso e da agenda inflacionada de problemas e demandas imposta ao Executivo. Este é um dos nexos fundamentais do regime político e um dos eixos essenciais da estabilidade institucional.
Nas notas a que me referi, agreguei uma afirmação mais taxativa: esse arranjo institucional aumenta consideravelmente os riscos de sérios conflitos entre Legislativo e Executivo, paralisia decisória,  ingovernabilidade e instabilidade institucional. É o que temos hoje.

Retornando ao argumento original, dizia então, que a dinâmica macropolítica brasileira tem se caracterizado, historicamente, pela coexistência, nem sempre pacífica de elementos institucionais que, em conjunto, produzem certos efeitos recorrentes e, não raro, desestabilizadores. Seria ingênuo imaginar que este arranjo político-institucional se tenha firmado arbitrária ou fortuitamente ao longo de nossa história. Na verdade, expressa necessidades e contradições, de natureza social, econômica, política e cultural, que identificam histórica e estruturalmente a nossa formação social. Tais características compõem uma ordem política que guarda certas singularidades importantes no que diz respeito à estabilidade institucional de longo prazo, sobretudo quando analisadas à luz das transformações sociais por que tem passado o país, e ao grau, ainda muito elevado, de heterogeneidade estrutural da nossa sociedade e consequente propensão ao conflito.
Sustentei naquela ocasião e continuo a pensar desta forma hoje, que não é por acaso que uma determinada sociedade apresenta tendência ao multipartidarismo e à fragmentação partidária. O determinante básico dessa inclinação ao fracionamento partidário é a própria pluralidade social, regional, cultural e política do país. O sistema de representação, para não perder a legitimidade por deixar forças políticas significativas sem representação adequada, deve ajustar-se aos graus irredutíveis de heterogeneidade sociopolítica. E é nas sociedades mais divididas e mais conflituosas que a governabilidade e a estabilidade institucional requerem a formação de coalizões e demandam maior capacidade de negociação política por parte do chefe do Poder Executivo.

Além disso, em situações em que há distâncias muito grandes entre a ação concreta dos componentes da coalizão e a agenda presidencial, sua estabilidade pode ser seriamente comprometida. A menos que existam subconjuntos capazes de encontrar meios de suprir esses vazios com opções reciprocamente aceitáveis. Queria, me referir à necessidade de mediadores eficazes no conflito entre Legislativo e Executivo. Estes podem ser lideranças internas ou externas, com trânsito e credibilidade entre as forças que compõem a coalizão governante. Porque, dizia, mais que do peso da oposição dos “de fora” — sobretudo em se tratando de grandes coalizões (como é o caso hoje) —, o destino do governo depende da habilidade dos “de dentro” em evitar que as divisões internas determinem a ruptura da aliança. Essa ruptura é, freqüentemente, precedida por um “fracionamento polarizado”, no qual cada segmento nega legitimidade aos demais. Esta deslegitimação recíproca compele cada parceiro a se distanciar dos outros e a enfatizar, radicalmente, suas diferenças. Expande-se o espaço da competição, rompendo os limites da tolerância, e reduz-se a autonomia das lideranças e a autoridade de seus mandatos. A superação negociada dos conflitos torna-se cada vez mais difícil, porque a polarização amplia desmesuradamente as concessões necessárias de parte a parte e aumentam as dificuldades de persuasão das facções parlamentares e dos militantes para que apóiem tais concessões. Além disso, a crescente fragilidade da posição das lideranças aumenta sua resistência a encampar posições que lhes possam custar o apoio das bases.

Toda essa argumentação está no artigo original, no qual concluo que as “cisões internas e a instabilidade a elas inerentes são naturais em qualquer governo de coalizão, embora adquiram contornos mais graves em épocas de crise. Requerem, portanto, uma série de mecanismos institucionais e políticos que regulem este conflito, promovam soluções parciais e estabilizem a aliança, mediante acordos setoriais de ampla legitimidade”. A coalizão pode romper-se de duas maneiras: 1) pelo abandono dos parceiros menores, situação na qual o presidente passa a contar praticamente apenas com seu partido e é forçado a alinhar-se com suas posições majoritárias; 2) ou pelo rompimento do presidente com seu partido ou com o partido majoritário da coalizão, que o deixa em solitário convívio com frações minoritárias. A situação presidencial se agrava se o presidente é estranho aos quadros do partido do qual necessita para estabilizar sua posição de governança. Em ambos os casos, resultam, em grau variável, no enfraquecimento da autoridade executiva e maior potencial de conflito entre Legislativo e Executivo.

É elementar que, no presidencialismo, a instabilidade da coalizão atinge diretamente a presidência. É menor o grau de liberdade de recomposição de forças, através da reforma do gabinete, sem que se ameace as bases de sustentação da coalizão governante. No Congresso, a polarização tende a transformar “coalizões secundárias” e facções partidárias em “blocos de veto”, elevando perigosamente a probabilidade de paralisia decisória e conseqüente ruptura da ordem política.

Por isso mesmo, seguia o argumento, governos de coalizão requerem procedimentos institucionalizados para solucionar disputas interpartidárias internas à coalizão. É necessário que exista sempre um nível superior de arbitragem.

No caso de regimes parlamentaristas, o resultado imediato do enfraquecimento da aliança seria a dissolução do gabinete e a tentativa de recomposição de uma coalizão de governo, não pelo presidente, no caso dos regimes republicanos, mas pelo primeiro-ministro. Caso esta fracasse, recorre-se a eleições gerais, buscando uma nova correlação eleitoral de forças. Eu já tratava, àquela época, do caso francês (e hoje português), que prefiro chamar de “presidencialismo de gabinete”, a “semi-presidencialismo” ou “semi-parlamentarismo”. O presidencialismo de coalizão distingue-se “dos regimes da Áustria, da Finlândia e da França pós-gaullista, que poderiam ser denominados de ‘presidencialismo de gabinete’ (denominação que utilizei por analogia com o termo inglês cabinet government). Na crise, demite-se o ministério, preservando-se a autoridade presidencial.” No caso do presidencialismo de coalizão, é o próprio presidente quem deverá demitir o ministério e buscar a recuperação de sua base de apoio, em um momento em que enfrenta uma oposição mais forte e que sua autoridade está enfraquecida. A reforma ministerial, contudo, no presidencialismo de coalizão tem se mostrado mais um fator de agravamento da crise política que solução de equilíbrio. Será muito pior a situação do presidente se estiver rompido com o partido-pivô de sua coalizão, ou facções relevantes dele. No “presidencialismo de gabinete”, o presidente não interfere na agenda legislativa rotineira, exerce poder moderador e comando estratégico sobre a agenda de macro-questões: orientação da política geral de governo, política externa, reformas e similares. A gestão do dia-a-dia e o desgaste decorrente são do primeiro-ministro ou “ministro coordenador”. No caso da coabitação, argumentava, “o regime torna-se mais parlamentarista, na medida em que o primeiro-ministro representa a maioria saída das eleições parlamentares” e o presidente a maioria antecedente, originada da disputa para o executivo. Este é o risco da dissolução do gabinete e convocação de novas eleições parlamentares. O presidente representa uma correlação de forças que já não existe mais e o primeiro-ministro sai da maioria que expressa as preferências contemporâneas da sociedade.

Desenhei hipóteses, em caso de ruptura do “pacto de poder” do qual o presidente derivava sua coalizão, em cenários “desviantes” da normalidade institucional. O primeiro, de instabilidade crônica, em que “o presidente torna-se cativo da vontade de seu partido, [ou do partido-pivô] delegando sua própria autoridade — situação de equilíbrio precário e de alto risco para a própria estabilidade da ordem democrática”. O outro, em que o presidente resolveria “confrontar o parlamento e afirmar sua autoridade numa atitude bonapartista ou cesarista altamente prejudicial à normalidade democrática”. A “submissão do Congresso ou a submissão do presidente representam, ambas, a subversão do regime democrático.  E este é um risco sempre presente, pois a ruptura da aliança, no presidencialismo de coalizão, desestabiliza a própria autoridade presidencial.”

Esses cenários explicitariam, no limite, o fato de que o presidencialismo de coalizão requer um mecanismo de arbitragem, de regulação de conflitos, que sirva de defesa institucional do regime, assim como da autoridade presidencial e da autonomia legislativa, evitando que as crises na coalizão levem a um conflito irresolúvel entre os dois pólos fundamentais da democracia presidencialista. O Império tinha no poder moderador um mecanismo desse tipo. A Primeira República não adotou mecanismo semelhante, mas buscou o equilíbrio por meio “da política de governadores”, estabelecida por Campos Sales. O presidente representava a coalizão majoritária de oligarquias estaduais. Os momentos de instabilidade corresponderam, sempre, àqueles em que as oligarquias centrais, se desentenderam. O caso mais expressivo foi a dissidência que se abriu no núcleo oligárquico dominante, quando Rui Barbosa candidatou-se à presidência, contra a vontade de

Minas Gerais e São Paulo e com o apoio da Bahia. No Brasil da Segunda República, essa arbitragem foi militar, com gravíssimas consequências para as liberdades democráticas. Na Terceira República, persiste o mecanismo do impeachment, mas afastou-se o perigo da arbitragem militar. E o Supremo Tribunal Federal, de modo similar e mais profundo que nos EUA, torna-se, em parte, “poder moderador”, instância de mediação, para garantir, no limite, a ordem constitucional. Tem a legitimidade e a autoridade derivadas de sua posição como um dos três poderes da ordem republicana, encarregado de defender a ordem constitucional como última e inapelável instância. O resultado é a judicialização do conflito entre os dois poderes políticos.

Nos Estados Unidos, a Suprema Corte tem poderes que lhe permitem intervir nos conflitos constitucionais entre Executivo e Legislativo e há o mecanismo do impeachment para os casos de comportamento irregular do presidente.

Cito a conclusão  principal desse raciocínio analítico: “o nó górdio” do presidencialismo de coalizão é a propensão à instabilidade, de alto risco, e cuja determinação tem como elemento principal o desempenho corrente do governo e, secundariamente, sua disposição de respeitar estritamente os pontos considerados inegociáveis, os quais nem sempre são explícita e coerentemente fixados na fase de formação da coalizão.

Governos de coalizão têm a necessidade funcional indispensável de uma instância, com força constitucional, que possa intervir nos momentos de tensão entre o Executivo e o Legislativo, definindo parâmetros políticos para resolução dos impasses e impedindo que as contrariedades políticas de conjuntura levem à ruptura do regime. Por outro lado, este instrumento de regulação e equilíbrio do regime constitucional serve, no presidencialismo de coalizão, para reduzir a dependência das instituições ao destino da presidência e evitar que esta se torne o ponto de convergência de todas as tensões, transformando o insucesso presidencial em gatilho determinante da ruptura institucional.

Os ciclos do presidencialismo de coalizão.

A referência ao desempenho presidencial como fator decisivo de estabilidade da coalizão e da governabilidade não estava acompanhada de demonstração analítica similar à da dinâmica do presidencialismo de coalizão. Ao longo dos anos, observando e analisando as distintas conjunturas de funcionamento concreto do presidencialismo de coalizão, desde o governo Collor, terminei por adicionar um novo mecanismo analítico, ao qual denominei de “ciclos do presidencialismo de coalizão”. Estes ciclos corresponderiam à dinâmica das condições de exercício da liderança política do presidente e estabilidade da coalizão, associada ao desempenho corrente do governo. Este desempenho teria reflexo na popularidade presidencial, na sua sustentação social, com rebatimento decisivo sobre sua liderança e capacidade de manter a lealdade da coalizão.

O princípio motor dos ciclos é a força central da Presidência nos regimes presidencialistas. Esta força de atração determina a intensidade e o grau de conflito na interação Executivo/Legislativo. A estabilidade da coalizão depende crucialmente dessa atração da Presidência. A relação entre os poderes é um espaço de conflito e negociação no ambiente institucional formado pelos poderes da república (Executivo, Legislativo e Judiciário). No parlamentarismo, essa relação é internalizada pelo parlamento. Nele, o primeiro-ministro presta contas permanentemente e se submete aos votos de confiança da maioria. No presidencialismo, à exceção do processo de impeachment, a negociação e o confronto centrais se dão no espaço institucional “externo”, com mediação eventual do Judiciário. É sempre intensa a negociação entre Executivo e Legislativo e, no Congresso, entre os blocos da coalizão governante, entre a coalizão majoritária e a oposição e entre as duas casas parlamentares.

Essas negociações e contrariedades envolvem sempre, em ambos os casos, não só os partidos, mas as facções partidárias e os blocos transpartidários, o que adiciona um fator a mais de complexidade ao sistema. A força de atração da Presidência está diretamente correlacionada a seu apoio social, à popularidade presidencial, ou avaliação de desempenho do governo. O sinal e a intensidade da popularidade explicam os ciclos. O sinal positivo e forte da popularidade alimenta o ciclo “centrípeto”, como, por exemplo, na “lua de mel”, logo após a eleição, que a crônica política estabelece como de duração média de 100 dias. A presidência com sinal fortemente positivo — alta popularidade, desempenho econômico favorável, inflação sob controle, renda real estável ou crescendo — sequer precisa muita habilidade ou empenho para negociar a adesão da coalizão a seu projeto de governo. Neutraliza, com facilidade, as tentativas da oposição de abrir dissidências na coalizão. As negociações se resumem à rotina das votações de MPs e projetos de lei, que são negociáveis caso a caso. Em numerosas ocasiões já caracterizei a coalizão governista típica no Brasil como um “pool” de maiorias possíveis. Como são “grandes coalizões”, não raro controlando mais de 70% dos votos na Câmara e perto de 60% no Senado, permitem várias composições de apoios individuais e de facções partidárias que permitem formar as maiorias eventuais, casuísticas, projeto a projeto.

No ciclo “centrípeto”, o centro ocupado pela presidência é plenamente dominante – seria possível usar o termo hegemônico – o presidente, com alta popularidade e liderança plenamente assegurada, consegue preservar o núcleo do governo com relativa facilidade. Este núcleo é um misto de cargos e projetos. Cargos de primeiro e segundo escalão centrais para o projeto de poder do presidente e seu partido não são contestados. Não há disputa por eles com os outros membros da coalizão e raramente há barganhas em torno dos projetos centrais do governo apresentados ao Congresso. O poder no governo é relativamente compartilhado, a rivalidade entre os parceiros da coalizão se dá dentro dos limites do negociável.

A cooperação Legislativo/Executivo é negociada com um mínimo de fricção, as maiorias parlamentares são estáveis. Ou seja, o “pool” constituído pela coalizão gera o número de votos necessários a cada caso, ainda que esses votos tenham que ser negociados na margem. A
ocorrência de situações de paralisia legislativa, embora exista, tem baixa probabilidade. Os efeitos da fragmentação partidária típica de nosso sistema político – hoje o Brasil é o país com o maior índice de fragmentação partidária do mundo – são mitigados por essa força centrípeta incontrastável da presidência, que tem alto poder agregador.

Essa força de atração começa a arrefecer em situações de crise deflagradas por escândalos de corrupção que atinjam o núcleo central do governo e a própria presidência, ou de alta inflação, queda da renda real e recessão. Se esse processo continua, o regime muda para o ciclo de “ambivalência”. Neste, o sinal positivo da Presidência é fraco, “regular”, não tem mais capacidade de atração suficiente para evitar a dispersão de facções dos maiores parceiros da coalizão – às vezes até mesmo do partido presidencial – os efeitos da fragmentação partidária se fazem sentir mais fortemente. A rivalidade entre os parceiros passa a afetar o núcleo central do governo. Surgem outras forças com relativo poder de atração na coalizão e na oposição. A rivalidade entre os parceiros transborda para pontos não-negociáveis, provocando crises de relacionamento e espasmos de paralisia decisória e legislativa. A coalizão se torna menos propensa a ofertar maiorias parlamentares. O sistema tende à fragmentação, a coalizão apresenta fraturas já irremediáveis, principalmente nos assuntos estaduais e locais. A oposição ganha mais espaço com o enfraquecimento da força de atração da presidência.

Se esse momento não for revertido por uma mudança significativa no ambiente político-econômico, o regime tende a mudar para o ciclo “centrífugo”. Neste, a presidência passa a ter sinal negativo. A popularidade cai de tal modo que a “popularidade líquida” (positivo – negativo) fica negativa. A atração se transforma em rejeição. A liderança presidencial é contestada, da mesma forma que o núcleo central do governo. Há paralisia decisória e legislativa, levando o sistema para uma crise de governança. Forças antes alinhadas ao governo e parceiras em sua coalizão gravitam em direção a novas lideranças que emergem no espaço deixado pelo apequenamento da liderança e da força de atração do presidente. A fragmentação se acentua. A oposição fica mais incisiva, porque obtém resposta “das ruas”. É nas fases mais maduras desse ciclo que tende a surgir o risco do impeachment.

O recurso ao impeachment e a mediação do Judiciário

O impeachment é um mecanismo constitucional, de decisão eminentemente política, que deve, para resguardar a normalidade democrática, seguir um rito juridicamente definido. A mediação arbitral do Judiciário, no caso brasileiro, está assegurada pela disposição constitucional que diz que o Senado, ao se constituir em instância de julgamento do Presidente da República, será presidido, durante o processo, pelo presidente do Supremo Tribunal Federal.

Diante da omissão do Legislativo, a primeira vez que o instituto do impeachment foi utilizado na Terceira República, seguiu rito derivado da mediação ordenadora do Judiciário, em 1992. Em outras palavras, o impeachment foi, para todos os efeitos, judicializado na Terceira República, diante da incapacidade ou recusa do Legislativo em adaptar a lei 1079 de 1950, que regulamenta o impeachment do Presidente da República por crimes de responsabilidade, à Constituição de 1988.
Agora, novamente provocado a mediar conflito em torno da operacionalização do impeachment envolvendo partidos, facções e blocos no Congresso, com as duas casas parlamentares aparentemente em pólos opostos, e a própria Presidência da República, opondo-se à presidência da Câmara, o STF decidiu agir com prudência. Revalidou a jurisprudência definida pela corte em 1992, para evitar interferir na autonomia do Legislativo e garantir segurança jurídica ao processo. Cuidados que resguardam, de fato, a estabilidade institucional e a ordem democrática. Acertou em praticamente tudo: na decisão de manter, o quanto possível, a jurisprudência; na postura minimalista e de prudência, evitando interferir em decisões privativas do Legislativo; na busca de garantir a segurança jurídica. Mas, ao recusar-se a examinar as consequências político-institucionais de longa duração de suas decisões, ponto a ponto, acabou por cometer dois graves erros e não foi bem sucedido, nem no quesito prudencial de preservar o espaço da autonomia do Legislativo, nem na observância de equilíbrio harmônico entre os poderes.

Os dois erros nasceram de preferências interpretativas, mais semânticas do que jurídicas. Particularmente no primeiro caso, o de mais profundas implicações para a ordem institucional de longo prazo. Falo da interpretação majoritária de que a autorização para o processo do Presidente da República, privativa segundo a Constituição, da Câmara dos Deputados, não vincula o Senado. Concretamente, se a autorização para processar o presidente fosse considerada vinculante, caberia ao Senado iniciar o processo para julgamento do presidente. A consequência seria o afastamento do presidente por 180 dias improrrogáveis. O Senado poderia decidir por arquivar a denúncia, o que acarretaria o retorno do presidente ao seu posto.

Mas a maioria interpretou diferente: a Câmara autoriza e o Senado pode derrubar a autorização por maioria simples, observado o quórum de abertura da sessão de dois terços do Senado.

Foram três os argumentos que ouvi dos ministros que defenderam essa interpretação: a) a Constituição de 1988 alterou as atribuições e poderes da Câmara dos Deputados, em relação às outras constituições republicanas; b) o Senado é a “câmara alta”, portanto não pode receber uma decisão vinculante, forçosa, da “câmara baixa”, isto é, a Câmara dos Deputados; c) a revisão senatorial se justificaria pelas “gravíssimas consequências” da abertura do processo, qual seja o afastamento cautelar, provisório, do Presidente da República.

Não se pode considerar que a interpretação da natureza vinculante da autorização da câmara popular seja uma aberração à luz da letra da Constituição de 1988 ou mesmo uma inovação doutrinária. O ministro Celso de Mello, que sempre se socorre da erudição doutrinária, citou pelo menos uma dezena de renomados exegetas constitucionais, entre eles reconhecidas autoridades no exame jurídico do estatuto do impeachment, que sustentam que a autorização da Câmara é vinculante, não podendo, portanto, ser revista pelo Senado, mesmo após a Constituição de 1988.

A interpretação de que ela é mera autorização sem consequência maior, pode até encontrar base jurídica e constitucional, não invadirei essa parte do mérito. Mas ela não se sustenta à luz da teoria democrática do estado republicano. A hipótese vinculante, ao contrário, além do fundamento jurídico-constitucional apontado pelos autores nomeados pelo ministro Celso de Mello, é a única que respeita os princípios da teoria republicana da democracia constitucional.

Começo pelo argumento político, este sim exótico, ao qual o ministro Celso de Mello recorreu, acompanhado enfaticamente pelo ministro Marco Aurélio Mello e, mais discretamente, pelos que acompanharam a dissidência aberta pelo voto do ministro Luis Roberto Barroso. Disse o decano do STF que o Senado não pode submeter-se a uma autorização vinculante emanada pela Câmara dos Deputados, porque é a “câmara alta”. Esse conceito aristocrático é inteiramente estrangeiro à teoria republicana da democracia constitucional. Pode aqui e ali ter sido usado de forma pouco técnica, puramente como força de expressão. Mas não como princípio doutrinário. Ele faz parte da tradição das monarquias parlamentares, que mantém a esdrúxula e ultrapassada divisão aristocrática entre a “câmara alta” constituída por “lordes” e a “câmara baixa”, ou “câmara popular”. Mesmo no Reino Unido, hoje, discute-se seriamente o fim da “câmara dos lordes”, por não fazer mais sentido político algum na democracia contemporânea.

Essa divisão entre “câmara alta” e “câmara baixa” desapareceu da teoria democrática com a Revolução Republicana, também chamada de Revolução Americana. Por duas razões essenciais. A primeira, associada aos fundamentos da ordem republicana democrática, que se baseia na divisão equipotente dos poderes da República. A segunda, associada às funções representativas e institucionais de cada uma das casas do parlamento, quando a ordem constitucional prevê o sistema bicameral. A consagração do sistema bicameral está muito relacionada ao federalismo. No caso fundador da Revolução Americana, muito bem fundamentado nos “Artigos Federalistas” (Federalist Papers) dos pais da democracia republicana dos Estados Unidos, tratava-se de assegurar a representação popular e a unidade da federação. A “câmara popular”, nos EUA, por decorrência lógica, “câmara dos representantes”, expressava a soberania popular, a representação do povo das colônias fundadoras. O Senado, é a “casa da federação”, o garantidor da União, o instrumento constitucional que assegura a autonomia dos entes federados. O federalismo dos Estados Unidos põe o acento na autonomia dos entes federados e confere à União poderes regulatórios residuais. Daí a primazia, em Washington, dos assuntos internacionais. Basta ler os “Federalist Papers” para se ver que em princípio a reserva de poder admitida à União está centrada fundamentalmente na relação com outras nações e na decretação de guerra e paz. É a proteção das colônias unidas para formar a federação. Mas as duas câmaras são plebéias, portanto, ambas autônomas entre si. Até mesmo o poder de revisão não existe estrito senso. Para que se aprove uma lei, as duas casas votam autonomamente seu próprio projeto e, depois, constituem uma comissão bicameral para buscar uma solução de compromisso e consenso. Solução esta tanto mais difícil quanto maior a diferença entre as maiorias partidárias eventuais entre uma casa e outra. A Câmara legisla de olho nos interesses da sociedade. O Senado na autonomia dos entes federados e equilíbrio da União.
Na Alemanha, também bicameral, a principal casa do parlamento é o Bundestag, que corresponde à câmara de representantes do povo e o Bundesrat, é o “conselho federal”, que representa diretamente os estados (Land). A autoridade legislativa do Bundesrat subordina-se à do Bundestag.

Na ordem constitucional brasileira, preservou-se o federalismo, mas o acento é na União, daí nossa maior tendência centralizadora. Manteve-se, contudo, o princípio doutrinário de separação entre a “casa do povo” e a “casa da federação”. Não há hierarquia entre uma “câmara alta”, da aristocracia, e uma “câmara baixa” dos plebeus (ou burgueses na acepção da época). Havia diferença, sobretudo na legislação ordinária, entre a “câmara originária”, a Câmara dos Deputados, na qual se deveria originar a legislação, e a “câmara revisora”, o Senado, onde terminava o processo legislativo. Essa diferença desapareceu na Constituição de 1988, com a faculdade ao Senado de originar legislação, similar ao funcionamento do bicameralismo nos EUA. Mas manteve a distinção entre a “casa popular” e a “casa da federação”. Daí a diferença no método de votação para eleição de deputados — o voto proporcional, que expressa as diferentes correntes de opinião na sociedade — e senadores — o voto majoritário, que expressa o sentimento da comunidade estadual, do estado como um todo.

Do ponto de vista constitucional não há interpretação semântica que desfaça a indiscutível e límpida distinção doutrinária da teoria republicana da democracia, abrigada, sem metáforas, pela Carta de 1988.  Basta ler em conjunto seus artigos 45 e 46. O 45 diz “a Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos, pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal”. O 46 diz “o Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados e do Distrito Federal, eleitos segundo o princípio majoritário”. Esta interpretação, que é a doutrinariamente íntegra, do ponto de vista da divisão dos poderes na teoria republicana da democracia constitucional. Foi posta na mesa, de forma clara e correta pelo ministro Dias Toffoli e desconsiderada sem maior exame. Qualquer outra interpretação viola o espírito e a letra da nossa lei magna.

Fosse apenas essa a justificativa do voto da maioria, já seria suficiente para motivar um pedido de revisão nesse ponto da decisão majoritária. O segundo argumento, porém, revela o caráter extra-constitucional e extra-jurídico da decisão. Tratou-se de uma preferência política por determinado procedimento, justificada por uma interpretação semântica do que diz o artigo 51 da Constituição: “Compete privativamente à Câmara dos Deputados: I – autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado…” A maioria interpretou a atribuição constitucional privativa da câmara popular, como “mera autorização”, ou seja um ato meramente formal e simbólico, pelo qual 2/3 da Câmara indica que está autorizada a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente.  Mas autoriza a quem? Ao Senado, que tem a competência privativa de “I – processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade…” Diz a Constituição que o Senado pode desconsiderar ou rever a decisão da maioria de 2/3 da Câmara autorizando a abertura de processo? Não. Diz que cabe ao

Senado privativamente “processar e julgar”.

Para examinar a latitude possível da interpretação semântica, busquei no clássico Caldas Aulete o significado dos vocábulos centrais do artigo. “Autorizar: 1. Dar ou conferir autoridade, poder a. 2. Dar licença ou permissão para se fazer algo; permitir 3. Dar motivo ou direito a; validar, confirmar; justificar. (…) Processar: 1. Jur. Mover ação judicial contra (alguém ou algo); acionar. (…)  Então, dar poder para mover ação judicial contra o Presidente da República por crime de responsabilidade. E, também, para “Julgar: 1. Jur. Decidir, na condição de juiz. 2. Jur. Pronunciar sentença sobre réu 3. Emitir parecer ou opinião sobre algo ou alguém.” Ler que a Câmara meramente autoriza o Senado viola fortemente a natureza semântica dos vocábulos. A leitura mais fiel seria: a Câmara dá autoridade e poder ao Senado para mover ação judicial contra o Presidente da República e para decidir na condição de juiz e passar sentença. Ou seja a Câmara institui o Senado em instância processual e julgadora. O Senado ao processar, tem a faculdade de julgar improcedente a acusação. Mas não tem a liberdade para desconsiderar os poderes a ele conferidos por 2/3 da câmara popular.
A interpretação vencedora, que se distancia da letra e do espírito da lei e, também, da acepção lógica dos termos da Constituição, foi de rebaixamento da Câmara dos Deputados, decisão não-doutrinária, oriunda da preferência da maioria, preocupada com a consequência conjuntural, que seria o afastamento cautelar da presidente. Essa preocupação prevaleceu sobre o exame das consequências institucionais de longo prazo da determinação desse desequilíbrio entre as casas do Parlamento. Dar poderes ao Senado não é uma atribuição ordinária da Câmara dos Deputados, nada tem a ver com a atividade legislativa ou fiscalizadora. Não cabe aplicar a ela interpretações por analogia. É uma atribuição privativa e extraordinária da Câmara dos Deputados, no processo de impeachment contra o Presidente da República, como um dos poderes da República.
Do ponto de vista institucional e da teoria republicana da democracia constitucional, a interpretação íntegra, consentânea com o espírito republicano da divisão harmônica de poderes, é a de que o constituinte dividiu as competências de forma equilibrada, para proteger o Poder Executivo, a ordem democrática republicana e, em última instância, a sociedade, o povo soberano. Nesse caso, a formalidade dá garantias ao Presidente da República, da jurisdicidade do processo mas, sobretudo, assegura à sociedade que o Presidente da República, nos limites da lei, não ficará impune, nem terá a capacidade de interferir no exame de infrações político-administrativas que configuram crime de responsabilidade. Uma casa legislativa recebe a denúncia e autoriza o processo; a outra casa legislativa processa e julga; outro poder, o Judiciário, preside o julgamento, como árbitro. Garante-se o devido processo e a punibilidade, no caso de ser esta a decisão a final de todo esse processo formal e regulado por lei.

Se, no processo, o Senado não encontrar razões jurídico-políticas para julgar, aí sim, arquiva-o por insubsistência da denúncia. Mas não antes de abri-lo, por que ao não fazê-lo estaria desautorizando a outra casa parlamentar, junto com a qual forma o Poder Legislativo, em equilíbrio de potências, representando entes diversos da sociedade republicana e no exercício soberano de suas atribuições constitucionais privativas. E a proteção da sociedade ficaria fragilizada.
E pode o Senado julgar como bem quiser? Não, a Constituição continua a cuidar, no processo, da divisão harmônica entre os Poderes. Determina que o Senado, na qualidade de câmara processual e julgadora, será presidido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, reservando, no caso, parte do poder moderador ao judiciário, consagrando seu papel de mediação e arbitragem.
Transparente e uniforme a divisão harmônica, equilibrada, de atribuições entre as duas casa do Poder Legislativo e entre este e o Poder Judiciário, no processo jurídico-político do chefe do Poder Executivo. É muito mais expressivo da noção da divisão de poderes, fundadora da democracia constitucional republicana. Observa a garantia constitucional inarredável do devido processo e protege a sociedade. Para parafrasear os “Artigos Federalistas”, se os humanos fossem anjos e as instituições perfeitas, não precisaríamos de pesos e contrapesos procedimentais.

É igualmente mais expressivo da distribuição do poder moderador entre os poderes republicanos. No império parlamentar brasileiro este poder moderador era encarnado exclusivamente pelo imperador. Na ordem democrática republicana, a Câmara, com atribuição constitucional privativa limitada, conhece a denúncia e autoriza o processo. O Senado não pode, portanto, movido por motivação política circunstancial, iniciar um processo contra o Presidente da República de moto próprio. Não, para fazê-lo precisa da anuência da Câmara, que origina o processo, ao receber a denúncia e autorizá-lo. Logicamente, o Senado não pode, também, movido por motivação política circunstancial, deixar de processar o Presidente da República, uma vez autorizado por 2/3 da Câmara. Deve dar o passo seguinte, instaurar o processo, mover a ação, e determinar se há razões jurídico-políticas suficientes para julgar e sentenciar o chefe do Poder Executivo. Este, durante o processo, para evitar interferência, é afastado cautelar e provisoriamente do comando do Poder Executivo. O Senado, por sua vez, no exercício de sua competência privativa de processar e julgar, é moderado pelo Judiciário, instalado na sua presidência.

A estrutura lógica desse equilíbrio entre os Poderes, mostra como o próprio poder moderador é distribuído de forma equilibrada, impedindo a exacerbação do poder de cada um no exercício de suas competências exclusivas. Isto tudo dada a natureza singular do evento institucional extraordinário que é o procedimento de impeachment do Presidente da República. Mostra, também, a excepcionalidade das atribuições constitucionais dos poderes, que determina reserva de competências para a Câmara, para o Senado e para o Judiciário.

A decisão do Supremo, desequilibrou esta harmônica arquitetura de poderes excepcionais, esvaziou a competência privativa da Câmara, inflacionou os poderes do Senado e exacerbou sua interferência no processo institucional, manifestando preferências que têm mais substância política do que jurídica.
No segundo ponto, o STF decidiu invalidar a formação da Comissão Especial prevista pela Constituição, em nome da transparência e da primazia do partido político na democracia representativa. E, desta forma, assegurou a discricionariedade oligárquica, interferiu na autonomia da Câmara dos Deputados e limitou drasticamente o exercício da livre-escolha por parte dos deputados daqueles que os irão representar na Comissão Especial. O ministro Luis Roberto Barroso, “forçou a barra”, para usar expressão popular, ao recorrer ao argumento de que a primeira acepção de “eleição” no “Aurélio” seria “escolha”. Forçou o argumento para além dos limites do razoável e das possibilidades doutrinárias.
Diante do inusitado da alegada consulta ao “Aurélio” para lá encontrar, segundo suas palavras, que a primeira acepção registrada de “eleger” seria “escolher” motivou-me a fazer consulta dissidente. Fui ao Caldas Aulete, clássico dicionário da língua portuguesa e li: “eleger: 1. escolher mediante votação. 2. manifestar preferência por; escolher”. Mais curioso ainda, resolvi cotejá-lo com a versão online do “Aurélio”, que registra para “eleger” as seguintes acepções: “1 nomear por eleição. 2 preferir um entre vários.”

Esses verbetes fizeram mais sentido para mim. Eles têm mais a ver com o uso corrente da nossa língua. Um aluno monta seu programa disciplinar, combinando disciplinas “obrigatórias” e “eletivas”, isto é, entre as quais pode escolher. Quando o eleitor escolhe um candidato à Câmara dos Deputados, o faz por meio do voto, selecionando o candidato de sua preferência entre vários, o qual, se obtiver número suficiente de votos, será “eleito” deputado federal. Quando um deputado filiado a um partido político, escolhe um de seus pares para representá-lo em uma comissão da Câmara, ainda mais para finalidade tão extraordinária, faz todo sentido que queira “votar” naquele entre seus pares que melhor representa sua própria posição em relação ao tema que será objeto de deliberação pela comissão, a deixar esta escolha à discricionariedade do líder. A representação do partido será, desta forma, aquele conjunto de deputados que mereceu, entre todos, o “voto” da maioria de seus pares.

Mas não é uma escolha totalmente livre, ela está limitada por uma determinação constitucional: a comissão terá que ser composta de forma proporcional à participação dos partidos ou blocos partidários na composição da Câmara dos Deputados.

A Comissão Especial, todavia,  não representa um partido e sim o plenário da Câmara dos Deputados, se não, não faria sentido a provisão constitucional da proporcionalidade ao número de cadeiras dos partidos (ou blocos). Essa comissão formulará um parecer sobre a autorização de abertura de processo contra o Presidente da República por crime de responsabilidade, que será votado pelo plenário da Câmara e aprovado se obtiver a maioria de dois terços.

Ao determinar que o plenário votará simbolicamente chapa única composta por parlamentares do partido ou bloco indicados autocraticamente, discricionariamente, pelo líder do partido, a maioria do STF preferiu a interpretação mais oligárquica, centralizadora de poder e autocrática entre todas as alternativas possíveis. É uma decisão capenga, pois como é chapa única, se a maioria decidir não votar nela, não se forma a Comissão Especial. Qual o passo seguinte? O STF não se pronunciou. O que está dito em bom português pelo STF é que a Comissão Especial será formada por deputados nomeados pelas lideranças partidárias e referendados pelo plenário. Contrariamente ao que diz a lei, determinando que serão eleitos proporcionalmente à composição partidária do plenário. A decisão do STF não se legitima constitucional, legal, lógica ou doutrinariamente.

É cristalino que a Comissão Especial representa o plenário da Câmara dos Deputados, observada a proporcionalidade partidária, em obediência ao mandamento constitucional. Foi uma intervenção do Judiciário em decisão eminentemente interna da Câmara. Nos procedimentos do Legislativo, o soberano não é o partido, é o plenário. É ele a instância final de recurso em todo o processo legislativo.

Mas a justificativa do voto vencedor foi mais absurda e equívoca ainda. E esse outro erro semântico foi repetido por todos os magistrados em seus argumentos e preferências pessoais. Disse o ministro Barroso que as “candidaturas avulsas” eram inadmissíveis e feriam o princípio da representação partidária e da proporcionalidade constitucional. Por que? Não se tratava, a rigor, de candidaturas avulsas. A candidatura avulsa é, por definição, a de candidato não filiado a partido. Decorre do significado de avulso. Diz o Caldas Aulete, “avulso, que não faz parte de um conjunto”. Portanto, no caso, que não pertence ao partido ou bloco. Mas os candidatos eleitos pertenciam aos partidos. Eram candidaturas dissidentes de parlamentares oriundos dos partidos ou blocos, inconformados com a escolha autocrática, discricionária, arbitrária e enviesada do líder. Que, no caso do PMDB, seria, em seguida, destituído. Como a política é volúvel, voltou à liderança após a decisão do STF e, por suas declarações, não repetiria o ato antidemocrático que levou àquela dissidência.

Do ponto de vista conjuntural, a decisão do STF pode nem ter grandes consequências e nova escolha produzir resultado equivalente ao invalidado. Mas do ponto de vista institucional, tem consequências gravíssimas e antidemocráticas. Consagrou, em um caso de singular de atribuições procedimentais cruciais e extraordinárias, a hegemonia decisória, autocrática de um, em lugar da manifestação de muitos pelo voto. Independente de ser aberto ou fechado. Em outras palavras, oligarquizou decisões internas da Câmara. O  Supremo transformou o que deveria ser uma eleição, em uma nomeação. Feriu a democracia.

No mais, a repetição do rito anterior era, sem sombra de dúvida, o melhor caminho. Mas essas retificações na jurisprudência o tornariam mais democrático e lhe dariam função institucional de equilíbrio, preservação efetiva e ampla da segurança jurídica e consagrariam o equilíbrio harmônico entre os poderes da República. Um detalhe infeliz, motivado por razões conjunturais, com repercussões institucionais de longo prazo muito negativas.
Não sou capaz de dizer se o rito estabelecido pelo Supremo favorece ou não a presidente Dilma Rousseff. Não favoreceu Collor de Mello. Não é o relevante para minha reflexão. Não sei se a maioria simples do Senado vai evitar a abertura do processo e o afastamento provisório da presidente. O relevante é que a decisão da Suprema Corte promoveu desarmonia, desequilíbrio entre os poderes nesse processo que é extraordinário. Além disso, consagrou regras de deliberação eletiva no Congresso, que são oligárquicas e monocráticas, quando a democracia requer o pluralismo e a deliberação coletiva, colegiada, pelo voto. Que fosse aberto, mas voto para eleger um conjunto entre muitos. No silêncio da lei, que a casa legislativa exercesse o direito soberano de autonomia de escolha sobre a modalidade de voto. Como ensinava Hobbes a liberdade está no silêncio da lei. Se a lei não obriga, está permitido.

Nesses dois pontos, não sei dizer se a presidente ganhou. Mas estou convencido de que a democracia perdeu. A questão institucional deveria, inquestionavelmente, prevalece sobre os cuidados conjunturais. Proteger a presidente, evitar que seja afastada cautelarmente em consequência do voto de 2/3 da Câmara, ou do voto da maioria simples do Senado, presentes 2/3 de seus membros, é irrelevante. O afastamento, desde que respondendo às formalidades legais, cautelar e provisória, faz parte da vida democrática republicana. Não tem a gravidade que lhe atribuiu a maioria dos ministros da Suprema Corte a ponto de superar questões de fundo institucional cruciais para a democracia.
Graves são a suspeição de crime de responsabilidade e a crise política da coalizão que provocaram o processo de impeachment. Esses processos originados de profundas crises da coalizão de governo, da polarização extremada que promove fratura grave nas relações entre Executivo e Legislativo, do divórcio entre governo e opinião pública e da paralisia decisória tendem a adquirir dinâmica própria independente da vontade de personagens da cena política, por mais poderosas que pareçam ser.

Para mim, o ponto crítico, é que o presidencialismo de coalizão,   padece de fluidez institucional. O conflito entre Legislativo e Executivo se agrava irresolúvel, na ausência de mecanismos institucionalizados e legítimos de mediação e arbitragem. Sem limites definidos e amplamente compartilhados que criem mecanismos de mediação dos conflitos e de resolução dos impasses entre Executivo e Legislativo, agravam-se os riscos de crises institucionais cíclicas. Este é um problema sério, que tem raízes históricas, e que só encontrará solução em inovações constitucionais que permitam maior equilíbrio entre os poderes, mais rápida e eficaz resolução de crises entre Executivo e Legislativo e criem espaço para a recomposição de maiorias capazes de assegurar a governabilidade. O modelo institucional brasileiro é cronicamente deficitário de recursos de  resolução de conflitos. Estes, frequentemente bloqueiam o processo decisório. A tendência à hiper-judicialização em todos os setores da vida econômica, social e política, marcados por contenciosos que não se resolvem sem mediação externa é um sintoma evidente dessa anemia institucional. Esse quadro revela a necessidade de rápida institucionalização de procedimentos de negociação e resolução de conflitos que evitem que todas as crises desemboquem nas lideranças e, sobretudo, na Presidência, que todos os contenciosos sobrecarreguem o judiciário de demandas por arbitragem.

O presidencialismo de coalizão não é inexoravelmente instável, nem promove a ingovernabilidade crônica ou cíclica. Mas, por suas singularidades, e pela instabilidade que lhe é inerente, ao assentar a governança em uma grande coalizão, portanto com graus irredutíveis de heterogeneidade, requer mecanismos ágeis de mediação institucional e resolução de conflitos entre os poderes políticos da República, para além  do poder moderador do Judiciário. Pode ser, eventualmente, alguma forma de governo de gabinete. O importante é que já está claro, com quase três décadas de funcionamento ininterrupto e várias crises, que o presidencialismo de coalizão no Brasil, é governável, tem capacidades institucionais bastante robustas, mas tem um déficit institucional na resolução de crises de impasse polarizado entre Executivo e Legislativo. Ele precisa ser refundado, em um momento constituinte, fora do calor da crise, para que adquira novas capacidades institucionais voltadas especificamente para criar mecanismos mais ágeis e menos traumáticos que o impeachment.

Se for o caso de um regime de gabinete, como ele será presidencialista e de coalizão, é preciso robustecer o processo eleitoral, para que ele seja mais representativo e gere representações parlamentares mais responsáveis. Não se trata apenas de rever o mecanismo de voto em si, é preciso repensar as campanhas eleitorais, para deixar de serem uma batalha caríssima entre marqueteiros que escondem, em lugar de expor os candidatos. Campanha deve expor os candidatos ao escrutínio persistente do eleitorado, informá-lo adequadamente sobre as intenções, valores e capacidades dos candidatos, para fazerem uma escolha informada. Os mandatos devem estar sujeitos à renovação por algum tipo de recall e algum mecanismo de convocação eleições antecipadas. O processo de responsabilização política do Presidente da República precisa ser mais transparente e mais ágil, ainda que como recurso de última instância.

Como fazer essas mudanças e que desenho institucional se deve adotar são questões para um debate alentado, transparente e democrático. Não seria admissível promover mudanças de afogadilho, com motivações conjunturais. Como ocorreu, por exemplo, na adoção do parlamentarismo, solução apressada para a crise decorrente da renúncia de Jânio Quadros e o veto militar à posse do vice-presidente constitucional, João Goulart. Instaurar, por exemplo, o presidencialismo de gabinete, similar aos modelos da França ou de Portugal, no curto prazo, como solução para o trauma pós-impeachment, seria um erro que comprometeria ainda mais a democracia brasileira. Todo casuísmo institucional é ruim. O presidencialismo de gabinete seguiria sendo de coalizão. Dadas as características estruturais da sociedade brasileira, ele teria que ser ajustado à nossa realidade. Qualquer mudança dessa natureza demandaria debate amplo e transparente, investigação técnica de viabilidade e desenho constitucional, deliberação coletiva bem informada e decisão em um contexto de normalidade política, evitando-se ao máximo a contaminação de uma decisão constituinte sobre a ordem institucional por considerações casuísticas ou personalizadas. É um desenho para o longo prazo, para o futuro, não para resolver as aflições do dia.

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Numerosas pesquisas sobre o presidencialismo de coalizão, a dinâmica de formação de coalizões, montagem de gabinete e mecanismos institucionais que melhoram as condições de governança e governabilidade foram conduzidas desde a publicação de meu artigo. O nosso conhecimento sobre o sistema tornou-se mais robusto e mais completo. Não farei um excurso bibliográfico, mas destaco alguns poucos títulos representativos, sem minimamente fazer justiça ou esgotar todo o esforço extraordinário que marcou essa linha de investigação nas Ciências Sociais brasileiras, ao longo de quase três décadas.

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