São duas crises numa só. Crises gêmeas. Uma crise política, de relacionamento com o Congresso. Uma crise institucional, criada pela tentativa de enquadrar politicamente os militares, para que se tornem o braço armado do governo e não apenas os detentores da força legítima do estado. Bolsonaro quer manifestações explícitas de apoio militar, para intimidar as oposições civis e instituir um veto militar a um processo de impeachment, que retornou à pauta, ainda que veladamente, nas palavras de alerta do presidente da Câmara, Arthur Lira. Nenhuma das duas crise se resolve com as mudanças no ministério.
No campo político, as demandas do centrão vão além da busca de concessões fisiológicas, do toma-lá-dá-cá. Os parlamentares estão pressionados pela angústia e tensão em suas bases, por causa da progressão cruel e acelerada da Covid-19 e das mortes por ela ocasionadas. Reclamam de falta de leitos e de vacinas. Não há concessão fiscal que substitua a demanda por ação mais eficiente e menos negacionista no combate à pandemia.
A saída de Ernesto Araújo não deve ser computada como concessão ao centrão. Ele caiu, para não sofrer iminente processo de impeachment. Além dos delírios e da política externa contrária aos interesses nacionais, ele abriu conflito aberto com o Congresso e assinou sua sentença de queda. Ou caía por ato administrativo, ou saía, impedido por crime de responsabilidade e falta de decoro. A troca no Itamaraty, pode mudar o estilo, mas ainda não se sabe se mudará a política. Sai um delirante, entra um diplomata sensato e jeitoso.
O novo ministro, Carlos Alberto Franco França, porém, padece da mesma deficiência profissional de Ernesto Araújo, a falta de experiência. Na diplomacia, o exercício de funções de representação na função de embaixador, principalmente nos postos estratégicos nos EUA, países importantes da América do Sul, como Argentina, Chile e Colômbia, na UE, Alemanha, França e Reino Unido e nas Nações Unidas é essencial ao bom comando da política externa. Aprende-se nessa lide diplomática, aparando arestas, resolvendo conflitos, estabelecendo pontes, apoiando missões políticas e militares no Exterior, o que o curso do Rio Branco não ensina. É outro novato na condução da política externa que, na atual circunstância nacional e global, é uma das funções de estado de caráter essencial para ajudar o país a resolver a crise sanitária e econômica o mais rápida e satisfatoriamente possível.
No campo militar, há muita inquietação, mas não com o centrão e sim com Bolsonaro. É possível que Bolsonaro descubra que os institucionalistas, que concordam com o teor da carta de general Fernando Azevedo e Silva, são maioria. Eles desejam manter as forças armadas como instituições do estado e não pretendem contribuir para convertê-las em aparelho repressivo e intimidatório do governo.
Não creio que haja a possibilidade de um golpe militar no horizonte próximo. Também não acredito que os militares embarcariam numa tomada do poder político, com Bolsonaro no comando. Se há uma coisa que militar sabe distinguir é um bom comandante de um mau comandante. Bolsonaro é um comandante inepto. Ele sequer aprendeu as noções completas de comando que os cursos para os postos de topo do oficialato ensinam. Não chegou lá. Saiu tenente e virou capitão de lambuja. Também não tem a prática de comando, essencial na formação de um bom comandante, como a prática como embaixador é condição para a formação de um bom diplomata senior.
Se fosse para assumir o poder político, os militares o fariam com um bom comandante, um que tenha chegado ao topo de uma das três forças. Possivelmente do Exército, a força dominante. Bolsonaro é um comandante inepto. Os comandantes sabem disso. Não hipotecariam a reputação e a história futura dos militares a seu projeto político pessoal, que contém mais mesquinharia do que visão estratégica para o país.
As crises estão longe de superadas. Elas se somarão às crises pandêmica e socioeconômica, compondo um quadro de crise sistêmica perigosíssimo.