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Os eloquentes sinais prévios da tentativa de golpe

A robusta denúncia contra Bolsonaro e toda a sua cúpula — montada entre o início do governo e a reforma nos cargos palacianos em 29 de março de 2021— teve sinais antecedentes tão cristalinos que ultrapassam a categoria de indícios. Como a denúncia começa narrando fatos ocorridos em 2021, mas fixa-se nos eventos de 2022, vale relembrar todos os avisos de golpe dados por Bolsonaro em sua linguagem peculiar, entre 2019 e 2021. Tudo o que está escrito abaixo está gravado nos telejornais e publicado nos jornais. Advirto que o texto é longo, como a conspiração golpista de Bolsonaro.

Alertas iniciais

O primeiro alerta se refere aos dias posteriores a 8 de setembro de 2019, nove meses após a posse. Bolsonaro foi internado para nova cirurgia. No dia 10, Carlos Bolsonaro, que havia desfilado em carro aberto ao lado do pai no desfile de 7 de setembro, postou em seu Twitter que “por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos”. Bolsonaro, hospitalizado, não comentou. O vice-presidente Hamilton Mourão, do seu jeito, comentou “temos que negociar com a rapaziada do outro lado ali da praça. É assim que funciona.” O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia respondeu com dureza, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre fez declaração indireta e ambígua. Em resposta, o vereador postou no Twitter, sempre ofensivo e com sua escrita típica: “uma justificativa aos que cobram mudanças urgentes. O que jornalistas espalham: Carlos Bolsonaro defende ditadura. CANALHAS”. Pouco mais de nove meses após a posse, o episódio é um bom indicador do clima e da disposição que dominaria o governo por toda a sua duração.

No final do mês, o filho deputado Eduardo Bolsonaro, em entrevista a uma jornalista alinhada a seu pai em canal no YouTube, comentou manifestação de rua ocorrida no Chile, pedindo mudanças no Brasil. “Vai haver um momento em que a situação vai ser igual a do final dos anos 1960 no Brasil, quando sequestravam aeronaves, quando executavam-se e sequestravam-se grandes autoridades, cônsules, embaixadores, execuções de policiais, de militares. Se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente vai precisar ter uma resposta. E a resposta, ela pode ser via um novo AI-5, pode ser via legislação aprovada através de um plebiscito, como aconteceu na Itália. Alguma resposta vai ter que ser dada, porque é uma guerra assimétrica. É um inimigo interno, de difícil identificação aqui no país. Espero que não chegue a esse ponto, mas…”.

A justificativa do pai presidente foi ambígua. “Quem quer que seja que fale em AI-5 está sonhando.” Disse que “ele tem 35 anos e é dono do seu nariz. Mas tudo bem. Se ele falou isso, lamento, lamento muito”. Mais tarde, após ter visto o que o filho falou, justificou-o em entrevista à TV Bandeirantes. “Ele fala o que está acontecendo no Chile, que não pode acontecer no Brasil. Ele fala em um contexto, lá dos anos 1960, o Brasil viveu momentos difíceis. E o AI-5 foi quase uma imposição. Agora, ele fala também que o AI-5 não existe e nem queremos.” Eduardo Bolsonaro alegou que foi uma interpretação deturpada do que disse. A declaração tem todas as características de algo pensado e discutido nas rodas da extrema-direita que ele frequentava. No futuro, o próprio Bolsonaro faria o mesmo raciocínio, esquecendo-se do que negou em 2019.

No dia 8 de outubro de 2019, Lula foi libertado da prisão por decisão do STF. Bolsonaro reuniu um grupo de seguidores em frente ao Palácio da Alvorada, residência oficial da Presidência e comentou com uma de suas costumeiras frases cifradas “sou responsável por aquilo que acontece no Poder Executivo, tá OK? Eu não vou entrar em canoa furada. Eu tenho responsabilidade perante vocês”.

O ano dos horrores

Em 2020, o Brasil viveu o pior da pandemia. Foi um ano de horrores. Morreram centenas de milhares de brasileiros. Bolsonaro fazia chacota das mortes. Trabalhava sistematicamente contra as medidas sanitárias e contra o isolamento social. Fazia de tudo para desacreditar as vacinas.

Ele guardou para o dia 19 de abril de 2020, dia do Soldado e do Exército Brasileiro, a  mensagem com plena carga simbólica golpista, na usual linguagem agressiva e com viés anti-institucional. Encarapitado na boleia de uma caminhonete em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília, Bolsonaro disse a apoiadores que se aglomeravam no local, “agora é o povo no poder, nós não queremos negociar nada, nós queremos ação pelo Brasil”.

A manifestação em frente ao QG do exército encerrava uma carreata por Brasília, em meio ao agravamento da pandemia, com vários países europeus em lockdown. Os adeptos de Bolsonaro pediam o fim do isolamento social, um novo AI-5 e intervenção militar. Ele tinha a reposta. “Todos têm que ser patriotas, acreditar e fazer sua parte para colocar o Brasil no lugar de destaque que ele merece. Acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder. Mais que direito, vocês têm a obrigação de lutar pelo país de vocês.” E prometia, “contem com o seu presidente para fazer tudo aquilo que for necessário para manter a democracia e garantir o que há de mais sagrado, a nossa liberdade. Estou aqui porque acredito em vocês”.

No dia seguinte, o ministro Alexandre de Moraes determinou a abertura de inquérito para apurar a organização de atos contra o estado democrático de direito e suas instituições. Era o início da longa investigação que revelaria a trama golpista e desaguaria na denúncia de ontem, 18 de fevereiro de 2025 do Procurador-Geral da República Paulo Gonet encaminhada ao Supremo Tribunal Federal.

Bolsonaro começava a mexer na organização do governo. Já montava as peças estratégicas e operacionais do gabinete do desmonte institucional e do golpe. Demitiu o superintendente da Polícia Federal para colocar em seu lugar um de seus operadores, Alexandre Ramagem, então chefiando a ABIN, Agência Brasileira de Inteligência. Perdeu temporariamente um de seus aliados desde a fase de campanha, o então ministro da Justiça, ex-juiz Sérgio Moro. Ele pediu demissão do ministério da Justiça na quinta-feira, 23 de abril de 2020, alegadamente por causa da interferência de Bolsonaro na PF.

Bolsonaro teve que cancelar o decreto de nomeação de Ramagem, em razão de decisão do ministro Alexandre de Moraes que a suspendeu por ferir o “princípio da legalidade” ao atender a interesse pessoal do presidente. Insatisfeito, o então presidente da República reagiu com violência ao falar na costumeira pregação a grupo de seguidores reunido em frente ao Palácio da Alvorada, conhecido entre os jornalistas como ‘o cercadinho’. “Agora, tirar [Ramagem] numa canetada e desautorizar o presidente da República com uma canetada, dizendo em impessoalidade (sic)? Ontem quase tivemos uma crise institucional, quase. Faltou pouco.”

Em de abril de 2020, em uma reunião ministerial no Planalto, Bolsonaro estava fora de si. O vídeo da reunião foi liberado ao público pelo então decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello no dia 22 de maio. O ministro do Meio Ambiente defendeu aproveitar a atenção da mídia com a pandemia e desmontar todo o arcabouço de proteção ambiental por decreto. O ministro da Economia defendeu expandir o gasto público o quanto fosse necessário para reeleger o presidente. Bolsonaro disse que não precisava de AI-5, bastava um decreto invocando o artigo 142 da Constituição, cujas minutas foram reveladas no inquérito da Polícia Federal e constam da denúncia de Gonet.

O 142 do golpe

“Eu sou o chefe supremo das Forças Armadas. Ponto final. O pessoal tava lá, eu fui lá. Dia do Exército. E falei algo que eu acho que num tem nada demais. Mas a repercussão é enorme. ‘Ó, o AI-5’ Cadê o AI-5? O AI-5 não existe, não existe ato institucional no Brasil mais. É uma besteira. Artigo um quatro dois. É um pessoal que não sabe interpretar a Constituição. Agora, em cima disso fazer onda?” Ele se referia ao artigo da Constituição que, interpretado a seu modo, tornaria desnecessários atos institucionais como aqueles usados na ditadura militar.

Na visão de Bolsonaro, o golpe seria dado por dentro da Constituição. Mais adiante, ele fala que quer armar o povo. “Por isso eu quero que o povo se arme. Que é a garantia de que não vai aparecer um filho da puta pra impor uma ditadura aqui. Que é fácil impor uma ditadura. Facílimo. Por que eu estou armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura. E não dá para segurar mais.”

Na manhã de 3 de maio de 2020, Bolsonaro escalou seus ataques contra os poderes republicanos. Da rampa do Palácio do Planalto, falou a manifestantes golpistas, com transmissão ao vivo nas redes. “Tenho certeza de uma coisa, nós temos o povo ao nosso lado, temos as Forças Armadas ao lado do povo, pela lei, pela ordem, pela democracia, e pela liberdade. E o mais importante, temos Deus conosco.”

As diligências sobre a disseminação de fake news e sobre os atos golpistas avançavam. Agentes da PF cumpriam mandados de busca e apreensão e intimações para depor que tinham por alvo aliados próximos de Bolsonaro. Ele se sentia ameaçado e escalava nas conclamações golpistas. Em outro ato antidemocrático em Brasília, no dia 28 de maio, esbravejou. “Mais um dia triste na nossa história. Mas o povo tenha certeza, foi o último dia triste. Repito, não teremos outro dia igual ao de ontem. Chega! Chegamos no limite. Estou com as armas da democracia na mão. Eu honro o juramento que fiz quando assumi a presidência da República.”

Em seguida, voltou-se contra as decisões do ministro Alexandre de Moraes relator responsável pelos inquéritos. “Acabou, porra! Me desculpem o desabafo. Acabou! não dá para admitir mais atitudes de certas pessoas individuais, tomando de forma quase pessoal certas ações.” Voltou ao caso de Ramagem, “nunca tive a intenção de controlar a Polícia Federal, pelo menos serviu para mostrar ontem. Mas, obviamente, ordens absurdas não se cumprem. E nós temos que botar limite nessas questões”.

Voltou a se manifestar no Sete de Setembro de 2020. O desfile militar foi cancelado em razão da pandemia. Mas Bolsonaro foi à rua. Reuniu uma aglomeração com centenas de seguidores para o hasteamento da bandeira em frente ao Palácio da Alvorada. À noite, em pronunciamento oficial por rede de rádio e TV, fez a apologia do golpe militar de 1964. Voltou a falar o contrário do que queria dizer. “No momento em que celebramos esta data tão especial, reitero, como presidente da República, meu amor à pátria, meu compromisso com a Constituição e com a preservação da soberania, da democracia e da liberdade, valores dos quais nosso país jamais abrirá mão.” Continuou, “nos anos 60, quando a sombra do comunismo nos ameaçou, milhões de brasileiros, identificados com os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas, foram às ruas contra um país tomado pela radicalização ideológica, greves, desordem social e corrupção generalizada”.

O marco-zero da denúncia dos golpistas

No dia seguinte à invasão do Capitólio, portanto 7 de janeiro de 2021, disse a apoiadores no Palácio da Alvorada que: “se nós não tivermos o voto impresso em 22, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”. Na noite do mesmo dia, voltou a fazer ameaças. “Houve desconfiança? Podem ser então auditadas essas sessões no Brasil. Qual o problema disso? Estão com medo? Já acertaram a fraude para 22? Eu só posso entender isso daí. Eu não vou esperar chegar 22, nem sei se vou vir candidato, para começar a reclamar. Vamos aprovar o voto impresso.”

Em 21 de março de 2021, reclamou do isolamento social determinado por governadores e prefeitos contra a sua vontade e fez nova alusão ao golpe militar. “Alguns tiranetes ou tiranos tolhem a liberdade de muitos de vocês. Podem ter certeza, o nosso exército é o verde oliva e é o de vocês também. Contem com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade”, declamou. Em seguida, “estão esticando a corda, faço qualquer coisa pelo meu povo. Esse qualquer coisa é o que está na nossa Constituição, nossa democracia e nosso direito de ir e vir”.

Bolsonaro fez os últimos movimentos do xadrez palaciano para o golpe, em 29 de março de 2021, com uma ampla mudança em ministérios-chave. Mais tarde, ficaria evidente que a mudança pavimentava o percurso presidencial rumo ao golpe. Nomeou Anderson Torres para o Ministério da Justiça, no lugar de André Mendonça, rebaixado para a AGU — Advocacia Geral da União, onde ficaria esperando ser premiado por sua fidelidade com o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal. Para o Gabinete Civil, deslocou o general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, que se tornaria um cargo sem importância, entregue a uma deputada do centrão. O general Ramos substituiu o general Braga Netto, deslocado para o ministério da Defesa, no lugar do general Fernando Azevedo e Silva, que foi demitido sem explicações e saiu dizendo que havia mantido a integridade profissional do exército.

No dia seguinte, 30 de março, diante do descontentamento dos militares com a demissão dos comandantes, Bolsonaro nomeou o general Paulo Sérgio Nogueira para comandar o Exército, o tenente-brigadeiro Carlos Baptista Júnior, para a Aeronáutica e o almirante de esquadra Almir Garnier Santos, para a Marinha. Todos os nomeados estão denunciados por Gonet, além dos que já estavam no entorno do presidente, o Ajudante de Ordens Mauro Cid, o general Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, e o assessor palaciano Filipe Martins. A única exceção foi do tenente-brigadeiro Carlos Baptista Júnior, então comandante da Aeronáutica. 

No dia 31 de julho, no credenciamento de um hospital do SUS, Bolsonaro fez uma de suas frases para serem entendidas pelo reverso, “Não abrimos mão de eleições democráticas, limpas e confiáveis no ano que vem. (…) Não consigo entender por que alguns, usando o poder da força, querem impor que nós não tenhamos uma contagem pública de votos e uma votação auditável”. Liderou mais uma procissão de motocicletas. Em vídeo ao vivo e disseminado pelas redes voltou ao mesmo ponto, ainda de forma enviesada e com ameaças. “Queremos eleições, votar, mas não aceitaremos uma farsa como querem nos impor. O soldado que vai à guerra e tem medo de morrer é um covarde. Jamais temerei alguns homens aqui no Brasil que querem impor sua vontade.” E reiterou a ameaça golpista, “sem eleições limpas e democráticas não haverá eleições”.

As declarações provocaram a reação do presidente do TSE, Luis Roberto Barroso e do presidente Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux. Nove ministros da Suprema Corte assinaram nota contestando Bolsonaro e afirmando que sua proposta representaria “volta no tempo das mesas apuradoras, cenário das fraudes generalizadas que marcaram nossa história”. Mas o pior de suas declarações não era a exigência do voto impresso, era a ameaça de não haver eleições caso fosse contrariado. Era a palavra de ordem para o golpe pretendido.

No dia 2 de agosto, primeiro dia útil do mês, o Tribunal Superior Eleitoral decidiu abrir inquérito para investigar as investidas antidemocráticas de Bolsonaro. Enviou notícia-crime ao Supremo Tribunal Federal contra ele para que fosse investigado no inquérito das fake news. No dia 3, o ministro Alexandre de Moraes incluiu Bolsonaro no inquérito das fakes news, e ele reagiu com ameaça mais explícita de golpe. “Ainda mais um inquérito que nasce sem qualquer embasamento jurídico, não pode começar por ele. Ele abre, apura e pune? Sem comentário. Está dentro das quatro linhas da Constituição? Não está, então o antídoto para isso também não é dentro das quatro linhas da Constituição (…) Jogo dentro das quatro linhas da Constituição, e jogo, se preciso, com as armas do outro lado”.

Agosto foi um mês de intensa pregação golpista. No dia 5, em entrevista à rádio 93 FM do Rio de Janeiro, ameaçou os ministros Alexandre de Moraes e Luis Roberto Barroso, na presidência do TSE e questionou a autoridade dos dois. “A hora dele vai chegar porque está jogando fora das quatro linhas da Constituição há muito tempo. Não pretendo jogar fora das quatro linhas da Constituição para questionar essas autoridades, mas acredito que o momento está chegando.”

O mês de setembro de 2021 começou com blogueiros e ativistas ligados a Bolsonaro incitando protestos antidemocráticos no 7 de setembro. A pedido da Procuradoria-Geral da República, o STF emitiu ordens de prisão contra um blogueiro e uma liderança de caminhoneiros que planejavam atos ilegais na celebração da Independência. Bolsonaro repetiu a senha para o golpe. “Nós não precisamos sair das quatro linhas da Constituição. Ali temos tudo que precisamos. Mas, se alguém quiser jogar fora dessas quatro linhas, nós mostraremos que poderemos fazer também valer a vontade e a força do povo.”

A sequência de ataques e ameaças às instituições preparava a mobilização para o 7 de setembro de 2021, quando Bolsonaro faria o discurso de lançamento do golpe na avenida Paulista. Neste dia, ele acordou em Brasília repetindo suas ameaças, “não aceitaremos qualquer medida fora das quatro linhas da Constituição. Não podemos aceitar que uma pessoa específica da região dos Três Poderes continue barbarizando nossa população. Ou o chefe desse Poder enquadra o seu ou esse Poder pode sofrer o que não queremos”. 

A estratégia do golpe híbrido

O golpe era parte da estratégia política de Bolsonaro desde o início de suas andanças pelo país que depois se transformaram em campanha presidencial. A estratégia contemplava o desmonte das instituições democráticas por dentro, à la Viktor Orbán e como Donald Trump está fazendo no seu retorno. Se não fosse possível, a opção era caminhar para o golpe clássico. A insistência em dizer que “jogaria dentro das quatro linhas da Constituição” se explica pelo fato de que imaginavam que bastaria para o golpe invocar o artigo 142 da Constituição. Essa estratégia se enquadra na modalidade de trama golpista que a literatura especializada tem chamado de golpe híbrido, que combina a nova forma de desmonte da democracia e o golpe de estado clássico.