Ao dizer no Senado, ao lado do relator do orçamento, que a transição começou, o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, disse muito mais. Aquele momento demarcou o final do governo Bolsonaro e a retomada do controle do poder pelos políticos. Era a inauguração formal da transição. O processo em si, como fato político, havia começado bem antes. Quase logo depois das eleições. Enquanto Bolsonaro se contorcia no seu mutismo, as engrenagens políticas começavam a se mover novamente e encerravam seu governo.
Como um personagem já superado na vida real da política, Bolsonaro resolveu balbuciar algumas palavras sem sentido 48 horas após o fechamento das urnas. Ciro Nogueira já estava em contato com Alckmin. O vice-presidente Mourão, eleito senador, já havia ligado para o vice-presidente eleito para cumprimentá-lo pela vitória e oferecer-lhe uma visita ao Jaburu, sua futura residência. Nestes últimos dias de governo encerrado, os políticos irão se afastar de Bolsonaro e ele estará sob a vigilância do TCU e do STF. Não poderá fazer grandes trapalhadas.
Ao falar, Bolsonaro foi fiel à sua passagem na presidência. Feriu o decoro ao não reconhecer o resultado da eleição. Foi descortês, ao não cumprimentar o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva pela vitória. Foi golpista ao dizer que as manifestações, leia-se bloqueio de rodovias, eram legítimas e se deviam ao sentimento de injustiça eleitoral. Parte da grande imprensa e os ministros do Supremo Tribunal Federal preferiram reinterpretar as poucas óbvias palavras de Bolsonaro, dizendo que ele havia reconhecido o resultado das eleições e condenado as manifestações. Circula nas redes de que não passa de fake neews do bem. Eu chamaria de erro de julgamento mesmo. Ministros do STF disseram que, em off, ele reconheceu o resultado eleitoral. Mas a regra democrática é reconhecer de público e logo. Não se trata de assunto privado, nem sigiloso.
Logo depois das mal faladas palavras de Bolsonaro, seu ministro-chefe da Casa Civil, o notório Ciro Nogueira, disse que ele lhe havia autorizado a proceder com a transição, “assim que provocado”, isto é, tão logo a equipe de Lula solicitasse. Em público, eles sempre mentem. Não é necessária autorização presidencial para que se inicie o processo de transferência de informações administrativas e operacionais do governo que sai para o que entra.
A transição administrativa é regulada por lei. Ciro Nogueira já estava em entendimentos com Alckmin e o grupo de coordenação de Lula para dar início ao processo. Ele construiu a versão ex post, para melhorar o filme pelo lado de Bolsonaro. Pela lei, ele, como ministro-chefe da Casa Civil, é o responsável pelo processo e deve criar as condições, dar os meios e nomear a equipe de transição com os nomes escolhidos pelo presidente eleito. A nomeação é necessária porque que eles ocuparão cargos provisórios remunerados, pelo período que durar o processo. Esta dimensão da transição é uma rotina para assegurar a continuidade administrativa.
Sua formatação legal foi iniciativa do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que julgou necessário formalizar o processo, pois se tratava da entrada do governo de quem lhe fizera dura oposição. FHC não precisou de transição, quando ganhou a presidência. Era o principal ministro de Itamar Franco e comandou o Plano Real. A passagem da presidência Itamar Franco para a sua foi uma mudança doméstica. Com a lei, descarnou o processo da rivalidade partidária e o transformou numa rotina político-administrativa da democracia. Não está isenta de atritos e fricções. Para impedir que os conflitos prejudiquem a obtenção das informações necessárias, o TCU decidiu fiscalizar a transição. O coordenador da ação fiscalizadora do TCU será o ministro Antonio Anastasia, que foi governador de Minas e tem experiência nesse procedimento.
Mas há uma transição política, essencial para o governo que se inicia em janeiro, que requer extensa negociação. Ela tem a ver com a finalização do orçamento. O centrão assumiu o leme do governo desgovernado para poder participar desta outra dimensão da transição que lhe interessa muito mais. De nada adianta garantir a liberação das informações necessárias à continuidade administrativa e à gestão de perdas e danos legadas pelo governo, se não tiver orçamento para o ano que vem. O orçamento é a questão chave para a governabilidade. Foi ao falar do orçamento que Alckmin disse que a transição já começou. A operação político-administrativa só terá início na semana que vem, no CCBB, Centro Cultural do Banco do Brasil.
A transição política começou com as conversas sobre o orçamento, que estão bem avançadas. Elas já acontecem há dias em reuniões do senador eleitor e ex-governador do Piauí, Wellington Dias, com o relator do orçamento que é o senador Marcelo Castro do MDB do Piauí. A relação com o relator é muito boa, ele e Wellignton Dias, além de conterrâneos os dois são aliados no estado deles. Wellington Dias tem muita força no Piauí, elegeu-se senador com votação superior à que o reelegeu ao governo do estado em 2018 e fez seu sucessor, Rafael Fonteles do PT no primeiro turno.
O acordo que se busca deve incluir a aprovação de emenda à Constituição que libere do teto de gastos os recursos necessários ao Bolsa Família de R$ 600,00 prometido por Lula. As negociações sobre a PEC e o orçamento darão o termômetro da relação com aqueles parlamentares da atual legislatura que se reelegeram e, portanto estarão na próxima legislatura, seja na coalizão de governo, seja na oposição.
A PEC e o orçamento são as peças essenciais para o bom início do governo Lula. Como disse o relator, senador Marcelo Castro, o orçamento apresentado pela dupla Bolsonaro/Guedes é mais furado jamais apresentado ao Congresso. É um projeto inservível. Terá que ser inteiramente reescrito e isto será feito, não mediante acertos com o governo moribundo, mas com o governo entrante.
Serão aprovados como o governo quer? Tudo indica que sim. É isto que Alckmin e Wellington Dias estão negociando com parlamentares que conhecem bem. Tanto a PEC, quanto o orçamento, serão votados pelo velho Congresso, não pelo que foi eleito. E muitos deputados e senadores que não foram reeleitos, ou se candidataram com sucesso ao governo de seus estados tendem a achar conveniente ajudar o novo governo.
A PEC da transição e o novo orçamento sendo aprovados, é muito provável que o orçamento secreto seja substituído por procedimentos transparentes e mais funcionais, retornando o poder usurpado à presidência da República. Não foi por acaso que Alckmin insistiu em dizer mais de uma vez, que a transição já começou. É uma forma de dizer que acabou a discussão sobre o resultado das eleições. Já há um novo governo em formação. E o processo político corre desimpedido, como antes desse intervalo de bloqueios sucessivos da política democrática.
Alckmin quis pôr a ênfase no fato de que a transição mais relevante é a de entendimento com o Congresso sobre o orçamento e as prioridades do governo. Daí também nascerão as alianças que culminarão na formação da coalizão pluripartidária com a qual Lula governará. A maior parte dos deputados foi reeleita e somente um terço do Senado foi renovado.
O terço renovado é um problema porque traz uma mistura de extremistas desvairados como a senadora eleita Damares Alves, e neófitos sem qualquer treino para a vida democrática no parlamento como Sérgio Moro e Hamilton Mourão. Mas não serão peças relevantes. Seus papéis centrais se esgotam com a gestão Bolsonaro. Entraram muitos parlamentares que são ou foram de coalizões de Lula e Dilma Rousseff.
Lula terá uma coalizão majoritária e ela estará no centro da maioria que aprovará a PEC da transição e o novo orçamento. Praticamente todas as facções do MDB, que é uma federação de chefes políticos regionais, estarão na coalizão de Lula. Várias já estavam com Lula desde o início do primeiro turno, outras, entraram com Simone Tebet. O mesmo ocorrerá com o União Brasil. Vários dos partidos do centrão que apoiaram Bolsonaro, formarão em torno de Lula. A minoria bolsonarista extremista será isolada e neutralizada.
A nova coalizão terá a tarefa de reconstruir as salvaguardas democráticas e desenhar novas defesas, naqueles pontos que se mostraram frágeis e foram ocupados por Bolsonaro no seu processo de destruição interna da democracia.
A política, que esteve bloqueada durante todo o governo Bolsonaro, voltou a fluir sob controle de políticos experientes. A política voltou para o centro da governança. A democracia voltou.