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Um ianque na Europa

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Na sátira de Mark Twain Um ianque de Connecticut na corte do rei Arthur, um turista americano, subitamente transportado para Camelot, imagina que aquilo é um asilo. Logo é abordado por um pagem, que lhe diz que fora buscá-lo. Ele responde “Eu sou um estrangeiro sem amigos, seja honesto e respeitoso comigo. Você está bem da cabeça?” Ele repete a pergunta se está em um asilo, “um lugar onde tratam pessoas loucas” e diante da negativa, diz “ou sou um lunático, ou algo horrível aconteceu”. Lembrei-me imediatamente do livro, ao acompanhar as peripécias de Donald Trump pela Europa.

Trump é autocentrado e está convencido de que sabe resolver os problemas dos outros melhor do que eles mesmos. Está pronto para fazer o mundo à sua imagem e semelhança. Só que ninguém o ouve e, quando o leva a sério, se aborrece muito com seu repertório curto e ofensivo de comentários.
Na Alemanha, depreciou o trabalho de Angela Merkel e disse que o país era totalmente controlado pelos russos. Merkel respondeu, tentando ser diplomática. Trump meio que se desculpou. Na OTAN, disse que se as nações europeias não aumentarem seus investimentos em segurança, ele retiraria o apoio militar dos Estados Unidos. Segundo ele, seu país protege os europeus, para construírem dutos com a Rússia, enchendo os cofres de Putin com bilhões de euros.

No Reino Unido, Trump fez pouco de Theresa May, disse que o ministro que recém renunciara ao cargo de chanceler por discordar dela daria um ótimo primeiro-ministro. Criticou a primeira-ministra por não ter seguido seus conselhos sobre a Brexit e comentou que desse jeito o acordo comercial entre os dois não sairia. Com relação à migração, a ideia fixa que tira o presidente americano do sério, afirmou que estava destruindo a cultura europeia. Depois desdisse o que disse, diante da repercussão negativa. Elogiou Merkel, afirmou que tinham ótimas relações. Isso apesar das expressões de óbvio desgosto da Chanceller alemã com ele, nas fotos de seus encontros em diversas ocasiões, não só agora. Desmentiu gravação na qual criticava May, balbuciou algumas desculpas e, fazendo pouco da multidão antiTrump nas ruas, informou que eles gostavam muito dele no Reino Unido.

Com seu vocabulário curto e repetitivo Trump atropela a diplomacia, causa danos na relações com aliados e deixa claro seu isolamento. Sua linguagem se resume a adjetivos vazios com predominância de terrific, tremendous e horrific, os dois primeiros para dar a impressão de que está tudo bem e o terceiro para descrever o tratamento recebido pelos Estados Unidos, principalmente no campo comercial. Trump costuma declarar sempre que gostam dele, por onde passa. Mas está sempre com o semblante tenso, um olhar de desafio, uma postura arrogante. Clássicas marcas de uma personalidade agressiva, desconfiada e insegura. É, exatamente isso, que Trump anda provocando em suas viagens como Chefe de Estado.

Depois que ele passa, entram os diplomatas e tentam aparar as muitas arestas por ele criadas. Vão consertando as declarações, com propostas mais práticas e consistentes. Dizem que não se deve considerar nem o que Trump diz, nem o que tuíta, mas apenas o que ele faz na prática. Mas, a política não se faz apenas com atos oficiais. As palavras contam e pesam. As atitudes dos governantes são levadas a sério. Pode parecer, mas não é uma sátira. É para valer. Cada palavra conta e se as de Trump são poucas e rudes. Quando as pretende positivas, são vazias e insinceras. Tudo isso tem peso político específico. Não se pode desprezar a importância política do simbólico.

Trump é contraditório em muita coisa. Mas, naquilo que tem mostrado alguma consistência, pelo menos ideológica, ele se parece mais com Nigel Farage, o ultranacionalista britânico, ou Marine Le Pen, a líder da extrema direita francesa. Tem menos pontos de vista em comum com Merkel, Macron e May. É isolacionista como os ultranacionalistas. Despreza o multilateralismo. Só investe em relações bilaterais. Retirou-se do Acordo de Paris e, mais recentemente, recusou-se a assinar o comunicado do G-7. Parece acreditar num mundo impossível, formado por autarquias econômicas e étnicas.

Sua relação mais incoerente é com Putin, de quem não esconde a admiração. Ele parece considerar a Rússia a nação inimiga, à qual os europeus estão concedendo sua autonomia. Vive com os russos uma relação política que mimetiza, em escala menor e menos consistente, a rivalidade da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a URSS. Ao mesmo tempo, continua nebuloso o grau de intimidade que ele e seus principais assessores tinham com os russos durante a campanha e quanto sabiam da interferência a seu favor na corrida presidencial os hackers a soldo do Kremlin. E é evidente sua atração e empatia com Putin.
Trump retornará de sua viagem sem amigos. Se tinha algum na Europa fez tudo para perdê-los. Ele é um especialista em como desagradar pessoas e perder amizades. Podia escrever um livro de auto-ajuda sobre isso. Se tivesse lido a estória de Mark Twain, talvez se lembrasse do alerta do pagem, Clarence, “cuidado! Essas são palavras terríveis! A qualquer momento essas paredes podem desmoronar sobre nossas cabeças, se você disser essas coisas!”.

Publicado originalmente no blog do Matheus Leitão https://g1.globo.com/politica/blog/matheus-leitao/post/2018/07/15/um-ianque-na-europa.ghtml