O discurso do presidente da Câmara Hugo Motta, de início tomado pelo valor de face das palavras alinhadas para fazer efeito e lhe dar uma aura de dignidade democrática, começa a ser tomado pelo que de fato foi. Ele contém algumas imprecisões de valor e sérias confusões entre vocábulos e conceitos correntes da política brasileira.
Motta ficou deliberadamente na difusa fronteira entre a homenagem e a apropriação indébita, ao usar o discurso de Ulysses Guimarães na promulgação da Constituição de 1988, que brandiu como se pensasse, de fato, respeitá-la na sua integridade. Ao mesmo tempo, feriu toda a doutrina constitucional ao interpretar a carta como um mandato para a expansão dos poderes do Legislativo sobre a execução do orçamento, uma prerrogativa clara do Executivo. O objetivo central do discurso era a defesa das emendas, que promovem o mau uso dos limitados recursos livres do orçamento, sem prestar contas à sociedade e aumentando a desigualdade. Além de outros fatores que promovem a desigualdade entre os moradores das cidades do país, acresce esse outro fator que desiguala os municípios, separando-os entre os com e os sem deputado. Quem tem deputado, tem emenda, quem não tem, que se vire para eleger um.
O deputado usou a frase mais afamada de Ulysses Guimarães, “tenho nojo e ódio à ditadura” e deu vivas à democracia, para encobrir sua defesa da anistia aos golpistas do 8 de janeiro de 2023, que invadiram e depredaram a Casa que passa a presidir. Por puro oportunismo, terminou dizendo “ainda estamos aqui”, para pegar a onda de um filme que trata das barbaridades do golpe que se quis repetir, tentativa que ele nega ter existido. Falou em moralidade, para disfarçar seu apoio à mudança da lei da ficha limpa e diminuir a pena de inelegibilidade de políticos que praticaram corrupção, abuso de poder econômico e outras ações fraudulentas e ilegais. Com a redução abre caminho para que o líder da tentativa de golpe, Jair Bolsonaro, possa voltar à política eleitoral.
Embaralhou vocábulos para desmerecer conceitos como presidencialismo de coalizão e semipresidencialismo. Sobre o primeiro, confundiu-o com o “toma lá dá cá” que ele definiu como “arrendamento do poder legislativo pelo poder executivo”. O presidencialismo de coalizão, como modelo para o exercício da governança, em um sistema multipartidário com fragmentação de moderada a alta, não contém como atributo o toma-lá-dá-cá, nem o aluguel dos votos do Congresso. Este é um atributo da política tal como exercida por partidos como o do deputado, sem programa, sem código de conduta para valer, sem visão de país, este último vocábulo usado em abundância pelo novo presidente da Câmara. “Pelo país” é a palavra de ordem para qualquer decisão, mesmo aquelas que ferem diretamente o interesse coletivo. São atributos da política partidária praticada no Brasil e não do modelo político brasileiro.
Em países onde a política é feita por partidos programáticos e com códigos de conduta vinculantes, as coalizões são feitas em torno de um programa comum de governo, sem toma-lá-dá-cá e sem aluguel de votos parlamentares. O deputado apenas usou o vocábulo, atropelando o conceito, sobre o qual deve ter ouvido de passagem.
Fez o mesmo com o semipresidencialismo. O que vigora hoje no país é uma crise de governança provocada por um Congresso dominado por partidos “pragmáticos” que descobriram nas emendas uma forma de internalizar o toma-lá-dá. Um presidente minoritário e um orçamento descaracterizado pelo uso paralelo de uma grande fatia de recursos sem qualquer vinculação a uma política pública planejada. E mais: sem avaliação de desempenho e muitas vezes sem transparência.
Temos um presidencialismo de coalizão sem coalizão majoritária de governo. Tanto no presidencialismo multipartidário, quanto no parlamentarismo multipartidário há necessidade de coalizões majoritárias de governo entre partidos afins, quando o chefe do Executivo não tem maioria com seu próprio partido. A coalizão majoritária estabiliza a governabilidade e assegura a governança. O mesmo vale para o semipresidencialismo multipartidário.
A diferença entre este e o presidencialismo é que o governo é chefiado por um primeiro-ministro, que precisa da confiança do parlamento. E a diferença entre o semipresidencialismo e o parlamentarismo é que no semipresidencialismo o presidente, em tese, tem mais poderes que o chefe de estado no parlamentarismo, seja ele presidente ou monarca.
O que o deputado chama de semipresidencialismo é a usurpação do poder executivo do presidente na execução orçamentária. O semipresidencialismo é uma forma de governo no qual presidente e parlamento compartilham em partes desiguais o poder executivo. Em alguns casos, é um modelo de parlamentarismo mitigado, em outros, de compartilhamento mais extenso dos poderes. Há grande variação entre os países que o adotam em relação aos poderes do presidente. Em todos os casos abaixo, o presidente é eleito pelo voto popular direto.
A França é o caso extremo de compartilhamento de poder e a qualidade da governança se diferencia pelo controle da maioria. O presidente tem o comando da política externa e de defesa, nomeia o primeiro ministro, que precisa ter apoio parlamentar mas não é eleito pelo parlamento, o presidente pode, ainda, propor ao parlamento que legisle sobre determinada questão, convocar eleições e dissolver o parlamento. O presidente é muito mais forte e tem o poder de agenda quando o primeiro-ministro e a maioria parlamentar são de seu partido. Ele fica bem mais fraco e a governança mais instável, quando a maioria e o primeiro-ministro são de outro partido e o poder de agenda se transfere para o parlamento. Os franceses denominaram essa situação de coabitação. É o caso do governo francês hoje, com a diferença de que o presidente Emmanuel Macron não aceita um primeiro-ministro da maioria de esquerda da Assemblée Nationale, criando uma conjuntura de instabilidade política, em que tanto o presidente, quanto o primeiro-ministro são fracos.
Portugal é um caso intermediário, o presidente tem poder de veto, pode dissolver o parlamento, e indica o primeiro-ministro com o apoio da maioria parlamentar. É um caso de parlamentarismo mitigado.
A Finlândia é quase um modelo de parlamentarismo presidencialista, em lugar de monárquico. O presidente tem o controle da política externa, mas todo o poder de agenda sobre as questões nacionais é do parlamento. O poder é parlamentar.
A Áustria tem um sistema que é basicamente parlamentarista. O presidente, embora nomeie o primeiro-ministro, em geral o líder da maioria, e possa dissolver a câmara baixa, o Conselho Nacional, é uma figura basicamente cerimonial. O parlamento tem todo o poder de agenda.
Se quiserem que o Brasil seja realmente semipresidencialista, os parlamentares terão escolhas críticas a faze no desenho de uma emenda constitucional. Primeiro, definir o papel de um primeiro-ministro; segundo, definir os poderes do presidente da República. Não se livrarão da necessidade de formar uma coalizão majoritária para apoiar o primeiro-ministro e serão responsáveis perante os eleitores pelo sucesso ou fracasso do governo.
Não vejo, também, como assegurar mínima estabilidade à governança em um modelo semipresidencialista bicameral, com as duas Casas do Congresso tendo poderes praticamente iguais. O Senado teria que deixar de existir ou se transformar numa Casa honorífica, à semelhança da Casa dos Lordes, inglesa, ou em um representante verdadeiro dos estados, como o Bundesrat austríaco. Esta Casa, na Áustria, não tem poder legislativo, apenas de revisão da legislação aprovada pelo Conselho Nacional, seus membros não são eleitos pelo voto direto, mas indicados pelas assembleias estaduais. Os vetos do Bundesrat podem ser derrubados por maioria simples do Conselho Nacional. Seu único poder real é a palavra final de veto sobre emendas constitucionais que afetem as competências dos estados, este não pode ser derrubado.
Os políticos brasileiros não estão, portanto, falando de mudar formas de governo e suas consequências constitucionais, legais e políticas. Estão usando vocábulos para justificar uma situação de fato que distorce nossa forma de governo e imobiliza a governança, sequestrada pelo parlamento para pagar seu resgate em emendas parlamentares. O projeto real é governar sem o ônus de ter que responder pelos erros das políticas adotadas.