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A posse do presidente distópico

O discurso de posse de Donald Trump no triunfal retorno após a derrota que jamais reconheceu convocou uma série de fantasmas da história menos honrosa dos Estados Unidos. Foi um discurso totalmente retrógrado, voltado para o passado como se o futuro pudesse ser uma repetição do que vê como virtudes abandonadas. Um discurso imperialista, versado na velha linguagem da segurança nacional.

Trump ressuscitou a visão mais imperialista do “excepcionalismo americano” para prometer que fará o país mais excepcional que nunca. A doutrina do excepcionalismo americano se baseia na crença de que os Estados Unidos é fundamentalmente diferente dos outros países por causa de sua história, de seu sistema político e seus valores e esse excepcionalismo compromete o país com a missão de promover seus valores no mundo. É a base da política externa intervencionista que, nos anos 1960-1970, legitimou a promoção por Washington dos golpes militares na América Latina, inclusive no Brasil e em outras partes do mundo, e a guerra do Vietnam entre outras barbaridades.

O que Trump disse: “Nós seremos uma nação como nenhuma outra, cheio de compaixão, coragem e excepcionalismo; nosso poder acabará todas as guerras e trará um novo espírito de unidade a um mundo enraivecido, violento e totalmente imprevisível. A América será respeitada e admirada de novo.”

Também é parte dessa mentalidade imperialista do passado o compromisso de levar astronautas americanos novamente ao espaço, ao dizer que eles implantarão a bandeira dos Estados Unidos em Marte foi entusiasticamente comemorado por Elon Musk na plateia. Provavelmente os astronautas viajarão em foguetes da Space X de Musk. Uma gorda bonificação pelas doações bilionárias e por colocar o X, ex-Twitter, inteiramente a favor de sua campanha. 

O que Trump disse: “Os Estados Unidos se considerarão novamente uma nação em crescimento, que aumenta sua riqueza, expande seu território, constrói suas cidades, aumenta suas expectativas, leva nosso plano a novos e belos horizontes, e buscaremos nosso destino manifesto nas estrelas, lançando astronautas americanos para plantar as Estrelas e Listras [ ‘Star and Stripes’ da bandeira do EUA] no planeta Marte.”

Um discurso nacionalista, protecionista como se nunca tivesse havido a globalização das cadeias produtivas para benefício das mais ricas e poderosas companhias americanas, boa parte delas com seus CEOs entre os convidados especiais, entre eles Elon Musk, da Tesla/Space X, Jeff Bezos, da Amazon, Tim Cook, da Apple, Mark Zuckerberg, Meta/Instagram, Sundar Pichai, do Google, Sergey Brin co-fundador da Google, Shou Zi Chew, Tik-Tok. Como, no seu primeiro governo, promete ser fortemente contra a China.

Esse nacionalismo justifica abandonar totalmente a política ambiental e climática de Biden, aumentar a produção e exportação de petróleo e gás — outra bonificação pelos bilhões que a indústria do petróleo injetou em sua campanha — estimular a produção de automóveis a combustão, eliminando toda a política em favor de veículos elétricos. Musk não será prejudicado, será beneficiado porque a Tesla é “americana”.

O que Trump disse: “A crise de inflação foi causada por massivo gasto em excesso e preços de energia explosivos e é por causa disto que hoje eu vou declarar uma emergência energética nacional. Nós vamos furar, “drill, baby, drill”. (…) A América será uma nação manufatureira de novo, nós temos algo que nenhuma outra nação manufatureira jamais terá: a maior quantidade de óleo e gás que qualquer outro país na Terra e vamos usá-la. Vamos baixar os preços, encher de novo até o topo nossas reservas estratégicas, e exportar energia americana para todo o mundo. Nós seremos uma nação rica novamente e é este ouro líquido sob os nossos pés que vai nos ajudar. Com minhas ações hoje terminaremos com o Green New Deal e revogaremos o mandato para o veículo elétrico, salvando nossa indústria automobilística, mantendo meu  compromisso sagrado com nossos grandes operários automobilísticos.”

Um discurso autoritário, expresso na forte promessa de lei e ordem, de deportações em massa e no propósito de governar, ao máximo, na base de ordens executivas, embora tenha maioria nas duas Casas do Congresso.

O que Trump disse: “E invocando o Alien Enemies Act of 1798 (Ato dos Inimigos Estrangeiros de 1798) eu vou determinar a meu governo que use seu completo e imenso poder de aplicação da lei federal e estadual para eliminar a presença de todas as gangues estrangeiras e redes criminosas para derrubar o crime devastador incluindo em nossas cidades e cidades do interior. (…) Como comandante-em-chefe, eu não tenho maior responsabilidade do que defender nosso país de ameaças e invasões, e é exatamente isto que vou fazer.”

A posse foi transferida para a Rotunda do Capitólio, em lugar das escadarias em frente ao prédio invadido por incitação sua em 2021. A mudança foi motivada pelo vórtice polar anunciado pelos serviços de meteorologia que deve levar frio extremo a Washington. Quem viu documentários sobre a invasão do Capitólio, terá visto a rotunda ocupada e depredada por grupos de extrema-direita com destaque para neonazistas, supremacistas e neofascistas. Depois, falando a seus seguidores em outra dependência que foi ocupada no 6 de janeiro, Trump falou que libertará dos “J6 hostages”, ele chama de reféns de 6 janeiro os condenados por sedição, invasão do Capitólio e violência contra oficiais da segurança. Após a posse, entretanto, Trump disse que gostou muito de ter sido no interior do Capitólio e não do lado de fora, que todas as posses deveriam ser assim.

Talvez o plenário da Câmara, onde os presidentes fazem o tradicional discurso “O Estado da Nação”, tenha influenciado Trump seu discurso, lido no teleprompter parecia com mais um desses do que um discurso de posse. Ele teve três camadas: a camada do ressentimento, cheia de ataques virulentos ao governo Biden; a camada do ego centrado em sua pessoa, nas supostas perseguições que sofreu e nas tentativas de assassinato contra ele.

O que Trump disse:  ”Aqueles que querem interromper nossa causa tentaram tirar minha liberdade e minha vida. Alguns poucos meses atrás, em um belo campo da Pensilvânia, a bala de um assassino atravessou minha orelha, mas eu senti então e acredito mais ainda neste momento que minha vida foi salva por uma razão. Eu fui salvo por Deus ‘to make America great again’, para fazer a América grande de novo.”

Foi o discurso de um presidente distópico, prometendo a grandeza de sua nação e a desgraça do mundo, como se isto fosse possível. Um discurso distópico baseado no que Zygmunt Bauman chamou de retrotopia, uma tendência sociológica que usa incertezas e desilusões da modernidade e medo do futuro para oferecer como solução e alívio um passado idealizado irrealizável e destrutivo.