O linchamento de Moïse Mugenyi Kabagambe, na barra da Tijuca, no quiosque Tropicália; os assassinatos de Durval Teófilo Filho, morto a tiros pelo sargento da Marinha Aurélio Alves Bezerra, em São Gonçalo; e de Jonathas Oliveira, 9 anos, também a tiros, no Engenho Roncadorzinho, em Barreiros, Mata Sul de Pernambuco, somam-se doloridamente às execuções seriais de homens e mulheres jovens e crianças de cor negra no Brasil. Eu poderia escrever esta abertura toda semana, com novos nomes de negros assassinados. Uma violência que se tornou rotineira, mas que não pode jamais ser considerada natural, como parte tolerável da paisagem social de nossa terra. É intolerável, é hediondo e é uma vergonha para todos nós brancos que assim seja, de forma impune e cotidiana.
O que Moïse, Durval e Jonathan têm em comum é a cor da pele e a forma impiedosa como foram mortos. No mais, pouco têm a ver um com o outro. Moïse era um refugiado do Congo, desempregado; Durval era empregado formal em ascensão social; Jonathas era filho do líder de moradores de engenho em Pernambuco, Geovane Oliveira. Os assassinos dos três tinham a intenção de matá-los. Não foi acidente, nem acaso. Foram mortes intencionais, por motivos torpes, e agravadas pela violência e pela crueldade.
Moïse foi linchado até a morte por Aleson Cristiano de Oliveira Fonseca, Brendon Alexander Luz da Silva e Fábio Pirineus da Silva. Podiam ter parado antes, mas não pararam. Só o deixaram quando já agonizava, aos estertores, em decorrência da destruição dos tecidos, do esmagamento de órgãos, do rompimento de artérias. Durval foi intencionalmente baleado na porta de sua residência por seu vizinho, suboficial da marinha, Aurélio, com a pistola .40 registrada em seu nome. Não foi morto por ser confundido com um ladrão. Foi morto por ser preto e morar no mesmo condomínio de seu assassino. Durval, após receber o primeiro tiro, levantou a mão pedindo paz, misericórdia. Seu assassino impiedoso saiu do carro, fez a mira, e o executou com mais dois balaços. Jonathas, na sua inocência infantil, fez o que toda criança, preta ou branca, faria diante do perigo. Escondeu-se com a mãe debaixo da cama. Seus assassinos o caçaram e mataram, paralisado pelo terror, em sua casa pobre de trabalhador rural. Foi morto para punir a transgressão social do pai. Dois jovens adultos e uma criança, todos inocentes, vítimas de racistas. Nem a cor, nem a classe social, nem a condição de refugiado justificam os crimes.
O sargento marinheiro homicida disse que se defendeu de uma violência que lhe parecia iminente. É mentira. Durval não lhe oferecia ameaça alguma, exceto pelo fato de ser seu vizinho indesejável. O agressor alegar legítima defesa porque considerou a presença próxima de um negro ameaça à sua vida ou à sua propriedade é comum. Faz parte do racismo firmemente enraizado em nossa cultura branca. Em nossa sociedade racista noticia-se como normal a justificativa de um homicídio como se motivado pela sensação de perigo com a proximidade de um negro. Não tem nada de normal sentir-se ameaçado porque um negro mora na vizinhaça. Parece razoável dar a notícia do crime dizendo que o criminoso atirou porque confundiu a vítima com um ladrão. Não é verdade. Não houve confusão alguma. O vizinho negro é ladrão por ser negro e estar onde não devia estar de acordo com nosso padrão cultural branco.
Eu sou um homem branco, nascido na classe média. Não tenho culpa formada por ser o que sou. Ficarei culpado, se não tiver consciência dos privilégios que esta condição me dá, independentemente de ter ou não contribuído para a produção desses privilégios. Tenho que saber que a cultura na qual me formei é patriarcalista e racista e que o patriarcalismo e o racismo têm sua origem numa sociedade colonizada e escravizada. A classe média branca podia não ter os meios para possuir escravizados, mas circulava livremente pela casa grande, onde era atendida por escravizados que vinham das senzalas ao lado. Esta é a matriz da qual todos nós, brancos — das classes proprietárias, dos assalariados de classe média e dos empobrecidos — saímos. Éramos todos livres e, da perspectiva da senzala, todos elite, todos da casa grande. Não escolhemos o berço em que nascemos, mas é escolha nossa, dos livres da sociedade branca, aceitarmos como legítima a perpetuação desta ordem social.
Cada uma das três vítimas da violência da sociedade branca — e não importa a cor de quem matou, a cultura da matança é branca — transgrediu a ordem social que vem da casa grande. Moïse, negro e estrangeiro, teve a petulância de cobrar salário que lhe era devido pelo trabalho informal. Durval, ousou ascender socialmente e se mudar para um condomínio, para fugir da violência. Jonathas nasceu filho de um trabalhador que se atreveu a liderar seus companheiros contra a injustiça no campo dos senhores de engenho. Não foram mortes incidentais, nem acidentais. Foram mortes prescritas pela ordem social racista e patriarcalista. Para esta ordem estas pessoas, com estas atitudes, não eram admissíveis.
A violência das mortes de Moïse e Durval foi registrada em vídeos. O terror, hoje, prescinde das telas do cinema. É registrado em tempo real, na vida real. A maneira cruel com que Jonathas morreu, na periferia da periferia, não teve vídeo. Mas relembremos o depoimento arrepiante do pai: “ouvi o barulho na parte de trás e fui ver o que era. Eles entraram, passaram por mim e foram para o quarto. Pegaram o menino, que estava embaixo da cama com a mãe, e atiraram”.
A questão é saber se aceitamos e contribuímos para perpetuar esta ordem estamental e cruel que divide a sociedade brasileira entre nós e eles, brancos e pretos, asfalto e morro, “centro” e periferia. O “centro”, no caso, pode ser a Barra da Tijuca, o condomínio de São Gonçalo, a casa dos senhores de engenho. Moïse sai da periferia para incomodar na Barra; Durval, sai da periferia para morar melhor em São Gonçalo; Geovane, pai de Jonathas, sai do seu lugar na periferia para ocupar uma área de litígio rural e liderar a luta dos moradores pelo direito à moradia.
Ter consciência de nossos privilégios nos convoca para a responsabilidade de ouvir os negros, porque eles são a vanguarda dos que pedem a justiça social, como disse Oswald de Andrade no discurso em boa hora resgatado por José Miguel Wisnik, cujo ótimo ensaio sobre a Semana de 22 para o Ilustrísima merece ser lido. O horror da escravidão, “do tronco infame, das cadeias e do chicote”, dão à gente preta “direitos enormes”, disse Oswald, há 85 anos, em homenagem da Frente Negra Brasileira a Castro Alves, no Theatro Municipal de São Paulo, como Wisnik contou.
Nosso lugar de fala é denunciar as nossas próprias classes pelo racismo estruturalmente cristalizado entre nós. É nossa obrigação moral, política e social militar cotidianamente pelo enraizamento da contracultura do antirracismo, ouvir a voz da gente negra e recusar qualquer justificativa para a violência diária que nossa sociedade impõe a ela. Não nos basta a indignação e o horror que sentimos ao saber de mais uma violência. E precisamos saber que não temos obrigação de reagir “porque poderia acontecer com um filho nosso”. Não poderia. A probabilidade, medida pela frequência com que se mata “um dos nossos”, contra a frequência com que se mata pessoas negras, desmente essa possibilidade. Nunca será para “nós” como acontece com “eles”. Temos obrigação de reagir porque esta ordem social que mata os negros é branca.
Não basta cada um de nós, ao lermos mais uma notícia de assassinato de negros — e quase todos homens, quase todos jovens — dizermos “eu não sou racista”. Enquanto nossa sociedade for racista, nós temos responsabilidade. Não temos culpa, individualmente, mas temos responsabilidade coletivamente pelo que fizemos de nossa sociedade. A gente preta é, sim, a vanguarda dos que pedem justiça social, e a elite branca é a vanguarda da marcha coletiva para a insensatez que nos trouxe até aqui.
Esse desgoverno violento, racista, predatório e parasitário em que nos metemos é o ponto de chegada dessa marcha insensata em que embarcamos. Para interromper essa insensatez coletiva, temos que buscar o veio que pode nos levar a uma nova ordem social. Temos que rejeitar o determinismo histórico visto como fado irresistível. Não precisamos ser assim porque sempre fomos assim, como se estivéssemos destinados ao pior do que fomos até aqui. A história existe para aprendermos com ela e não a repetirmos. Para buscar horizontes novos, não podemos nos enganar com a ilusão de que já somos bons entre poucos maus, porque não somos. Nós não somos bons.