Desde que o mundo tomou consciência de que o uso do arsenal nuclear nada resolveria, apenas liquidaria com a maior parte da população do planeta, a noção de poder armado, ou hard power, começou a perder importância nas relações internacionais. Com a mudança estrutural global da grande transição que atravessamos desde finais do século passado, os recursos mais importantes passaram a ser ciência, tecnologia, conhecimento, influência cultural. É uma forma mais sutil de poder, o soft power, termo difundido pelo politólogo Joseph Nye. Ele se assenta na reputação e no prestígio construídos a partir da ascendência intelectual, em um mundo digitalizado e globalizado.
Não se acumula os recursos necessários para exercer esse tipo de poder no mundo com a mesma facilidade com que se arma um exército. Hugo Chávez montou, em poucos anos, uma das forças mais bem armadas da América do Sul, importando armas da Rússia com o dinheiro do petróleo. Comprou o apoio dos militares ao projeto político autocrático, mas nada ganhou em prestígio. O prestígio durável da Venezuela vem do El Sistema, concebido pelo músico José Antonio Abreu. Ele consiste em um sistema de educação de jovens com alta capilaridade, que gerou mais de uma centena de orquestras juvenis, três dezenas de sinfônicas jovens, formadas basicamente por meninos e meninas de baixa renda. El Sistema gerou virtuoses e maestros que correm o mundo e projetam uma imagem sonora e brilhante de uma Venezuela hoje em escombros. Internamente, ele promove a autoestima e abre caminhos de sonhos aos jovens pobres do país, cada vez mais pobre. Mundialmente, dá prestígio ao país, que perde apreço mundial com os avanços autoritários de Nicolás Maduro.
É difícil construir esse poder sutil da ciência e da arte e fácil destrui-lo. Os Estados Unidos, ao sair da Guerra Fria, tinham um aparato intelectual potente para manter sua influência global. Uma rede de universidades de altíssima qualidade, centros tecnológicos pujantes, o Silicon Valley, Hollywood, Broadway, Walt Disney, Marvel, um mercado editorial pujante, uma imprensa diversificada, qualificada e independente, cobrindo todas as correntes de pensamento do país. Na economia, Wall Street oferecia a plataforma para a globalização do poder financeiro, por meio de seus fundos de pensão e investimento, que concentravam parte significativa da poupança de uma sociedade de massas consumista e, já no início da transição, detinham a propriedade da maioria das grandes empresas do país. Uma infraestrutura que substituía, com vantagem, o complexo industrial-militar, que foi a fundação do hard power americano no século 20. Não por acaso, nesse ecossistema soft surgiram potências econômico-culturais como a Amazon, Google, Facebook, Twitter, Apple, Microsoft entre tantas outras.
O Brasil sempre foi pobre em hardware, mas construiu um aparato cultural sólido, ainda que muito concentrado e com relativamente poucas vozes. A literatura brasileira alcançou e mantém prestígio internacional, embora com poucos autores e poucos leitores. O cinema brasileiro, desde o Cinema Novo, teve grandes nomes de projeção internacional. A bossa nova influenciou a música mundial e, nos dias de hoje, tem até mais prestígio internacional, do que nacional. Nas universidades públicas, formaram-se, em ambiente inóspito, ilhas de excelência científica. Por causa delas o Brasil participa de redes globais de pesquisa de grande influência, como o projeto Genoma. Institutos de pesquisa permitiram ao Brasil desenvolver capacidade científica e tecnológica competitiva em áreas estratégicas.
A Embrapa teve papel essencial no desenvolvimento de tecnologia que tornou nossas commodities agrícolas competitivas. Conseguimos nos projetar na pesquisa espacial e climática, com o INPE, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Sua capacitação, reconhecida e exportável, no monitoramento do desmatamento por imagens de satélite, permitiu preservar grande parte de nossa diversidade biológica, a plataforma mais importante de soft power econômico que temos. Na área médica, a Fiocruz habilita o Brasil na pesquisa de ponta em endemias e na produção de vacinas e outros medicamentos essenciais. Criada no Império, a diplomacia brasileira tornou-se uma das mais competentes e profissionais do mundo. São muito poucas as diplomacias com formação e carreira que estimulam a excelência profissional como a nossa. Ela permitiu ao Brasil exercer influência e liderança no cenário multilateral, muito além do que nossos recursos econômicos e militares nos dariam.
Donald Trump só acredita em hard power. Prefere ameaçar com o poder militar, a persuadir com a influência que o país conquistou. Jamais demonstrou qualquer apreço pelo aparato cultural e científico do país. Ao contrário, desmereceu e rebaixou instituições científicas de primeira linha, como a NASA, na sua cruzada negacionista contra a ciência climática. Atropelou diplomatas experientes e nomeou para cargos de representação do país no exterior pessoas com pouca ou nenhuma qualificação. Aposta no confronto, deixando de lado todas as possibilidades do país em exercer liderança por meio do soft power. Trump está minando as bases do poder mais sutil e efetivo dos Estados Unidos com suas más decisões comerciais, políticas e diplomáticas. Incita o supremacismo branco. Ofende representantes eleitas para o Capitólio, com amplo apoio popular, por não serem brancas e de direita. Fustiga as instituições republicanas, porque não fazem sempre sua vontade. Usa a tecnologia digital para disseminar fake news, investe duramente contra a imprensa profissional. Ao agir assim, na presidência, Trump desvaloriza o patrimônio de prestígio global arduamente construído.
Nos primeiros 200 dias de governo, Bolsonaro trabalhou sistematicamente contra o escasso soft power do Brasil. Paralisou o sistema educacional, fechou o fluxo de recursos para a pesquisa científica e tecnológica e investiu contra as universidades. Criou uma assombração ideológica que dominaria nossa produção cultural, as universidades e escolas. Tem estimulado a censura, que chama de filtro, a áreas de conhecimento e às artes. Desacreditou o Inpe, a Fiocruz e o IBGE diretamente ou por meio de seus ministros. Está promovendo o desmonte do sistema de preservação e promoção da biodiversidade. Desmoraliza e rebaixa a diplomacia brasileira, fazendo julgamentos infundados sobre seu desempenho, pondo de lado os mais experientes e graduados e promovendo os que ainda não passaram pelo teste de qualidade da instituição. Mostra desprezo pela cultura e pela arte do país, como fez na morte de João Gilberto, ou ao apoiar a interdição de intelectuais a eventos culturais. Atacou o cinema brasileiro, reconhecido continuadamente nos principais festivais de cinema do mundo, para o qual prescreve, também seu filtro censório. Como também, ataca sistematicamente a imprensa profissional e dissemina mentiras. Bolsonaro ameaça a reputação internacional do Brasil e destrói a marretadas o nosso escasso e valioso soft power.
Publicado originalmente no Blog do Matheus Leitão/G1