A votação da reforma da previdência, por larga maioria, bem acima do mínimo para emendas constitucionais, é um caso especial. Ainda não terminou. Foi só a primeira votacão, em primeiro turno. Ainda falta votar destaques que podem descaracterizar o texto-base. Em seguida, virá o segundo turno e, tudo resolvido na Câmara, o ciclo de dois turnos no Senado. Mesmo assim, foi o projeto de reforma previdenciária que teve votação mais expressiva a favor. Além disso, mudou o paradigma do regime previdenciário, ao aprovar, pela primeira vez, limites de idade para a aposentadoria. A votação ocorre em um momento de profunda crise econômico-social, com perda significativa e continuada da renda real dos assalariados e elevadíssimo desemprego, num quadro de disfuncionalidade do modelo político, com um presidente minoritário em atitude de confrontação com os demais poderes da República e apenas 33% de aprovação popular.
Como explicar resultado tão favorável, em circunstâncias tão adversas? Explicações completas demandam tempo e mais pesquisa. Mas, examinando-se a trajetória do tema nas últimas décadas, é possível alinhavar algumas hipóteses. Há, pelo menos, três conjuntos de fatores por trás desse resultado. Primeiro, a mudança de percepção e opinião da sociedade e das elites políticassobre a crise da previdência. Segundo, o quadro de emergência econômica e insuficiência fiscal. Terceiro, um conjunto de fatores propriamente políticos que influenciaram as escolhas dos parlamentares.
Mudança de percepção e opinião é um processo complicado. Demanda tempo. Em geral, essa mudança se dá progressivamente, passo a passo, por camadas na opinião pública e na opinião política. Tome-se o exemplo da mudança climática. Passaram-se 23 anos, entre o lançamento do tema, na Rio 92 e o Acordo de Paris, em 2015, e 18 anos entre o limitado Protocolo de Quioto e o Acordo de Paris. Muitos interpretaram a COP 15 de 2009, em Copenhague, como um fracasso, porque não chegou ao acordo que só se obteria em Paris, seis anos depois. Escrevi em meu livro Copenhague Antes e Depois que ali, todavia, os governos parceiros haviam cruzado um marco essencial. Não houve fracasso. Eles deixaram o território da negação, para chegar ao da aceitação de que a mudança climática era real, acelerada pela ação humana e que requeria ação global efetiva para mitigá-la. Essencial para mudar o rumo da conversa e desembarcar em Paris com o consenso formado.
A primeira vez em que participei de uma discussão sobre a crise da Previdência no Brasil, foi nos anos de 1980. Cheguei a escrever sobre o tema para três seminários, um deles da IPSA, International Political Science Association (1982), no Rio de Janeiro. Foram 15 anos, até que chegassse ao Congresso a primeira proposta de emenda constititucional para mudar a previdência, no governo FHC, em 1995. Ela propunha o piso de idade, que terminou rejeitado. Foram 24 anos para que o limite de idade fosse, finalmente, aprovado. Mas, ele ainda terá que sobreviver aos destaques, ao segundo turno e ao exame do Senado. Fernando Henrique conseguiu, em 1998, como compensação, aprovar o fator previdenciário, que mitigava marginalmente o problema. Lula alterou o regime previdenciário do servidor público, com concessões às pressões das corporações estatais, que limitaram o alcance de sua reforma. Dilma Rousseff instituiu a fórmula 85/95, que avançou mais alguns milímetros rumo ao limite de idade. Michel Temer apresentou proposta similar à atual, mas perdeu as condições de coordenar sua aprovação, atolado no episódio do encontro impróprio com Joesley Batista na calada da noite. Agora, no governo Bolsonaro, em circunstâncias adversas, um projeto abrangente, com os avanços que o tempo permitiu, passa quase incólume no primeiro turno da Câmara.
O processo fundamental para esta mudança foi a persuasão. Não no sentido fraco de convencimento pontual de parlamentares. Persuasão, no sentido forte de formação, ao longo do tempo, de consenso social e político em torno da necessidade da reforma previdenciária. É um processo complicado, que começa por mudar o enquadramento da questão. O objetivo é torná-la mais assimilável por setores com diferentes concepções morais, de justiça, e para convencer as pessoas a não olharem apenas sua situação particular, mas também a das gerações que se seguirão. Esse processo de persuasão é técnico, político e comunicacional. Ele precisa reduzir ao mínimo, a incerteza e a ambiguidade em relação ao tema em questão. A incerteza tem a ver com a falta de informação confiável sobre os aspectos mais divisivos. No caso da previdência, o primeiro deles referia-se à existência ou não de um déficit estrutural, intrínseco à sua situção atuarial, associado primariamente à mudança demográfica. Além disso, era preciso responder persuasivamente ao argumento, que também recorria a números e argumentos técnicos, de que o déficit, se houvesse, era na assistência social, pendurada indevidamente na previdência. Foram necessárias décadas de estudos e pesquisas, dedicação quase exclusiva de economistas, sociólogos e demógrafos, para gerar informação confiável, correta e objetiva que eliminasse a maior parte da incerteza em torno desses pontos. Os textos se tornaram mais legíveis para os leigos, o tema entrou para a agenda permanente da mídia, que se dedicou à propagação das informações, ao debate de pontos de vista, ajudando a ajustar o foco do enquadramento do tema, tornando mais conhecidos os argumentos e os dados.
Não bastava, porém, reduzir a incerteza. Era preciso enfrentar o outro lado da incompreensão, a ambiguidade política do tema. Durante muito tempo ele podia ser apresentado pelos que se opunham à mudança como uma proposta neoliberal contra os assalariados e a favor do capital. Era preciso mostrar que o problema era real e transcendia a visão neoliberal da austeridade fiscal e da solvência para satisfazer aos interesses do capital financeiro. Além disso, que comportava diferentes soluções técnicas, mais ou menos igualitárias, mais ou menos redistributivas. Esse esforço de reduzir a ambiguidade e revelar politicamente a objetividade do elemento estrutural que condenava o regime previdenciário vigente, precisava da participação não só dos economistas, sociólogos e demógrafos, mas, sobretudo, de lideranças políticas. Ao longo da última década e meia, políticos de diferentes orientações político-ideológicas, parlamentares, governadores e prefeitos, entraram na conversação pública sobre a reforma da previdência admitindo sua falência estrutural e mostrando os diferentes caminhos para enfrentá-las. Nas campanhas de 2015 e 2018, os principais candidatos admitiam a crise da previdência e a necessidade de enfrentá-la. Na de 2018, todos os candidatos competitivos tinham propostas concretas e diferenciadas para mudar a previdência. O que ainda se mantinha no terreno da ambiguidade era o de Fernando Haddad (PT-SP), que reconhecia que seria preciso fazer reforma apenas nos regimes próprios, ou seja das carreiras do setor público, para aproximá-los do regime geral. Exatamente o que Lula começou a fazer e o PT e demais partidos da esquerda, na votação desta reforma, rejeitaram.
Mas, formou-se o consenso necessário à mudança, de que se há um problema intrínseco, estrutural, no regime previdenciário brasileiro; que algum tipo de reforma é necessário; que é urgente; que o sistema é muito desigual. Na sociedade, como mostrou a última pesquisa do Datafolha, a população se divide, ainda. Mas a maioria, 47%, já apoia a reforma. Temos, ainda, uma cultura previdenciária. A maioria dos brasileiros conta com a aposentadoria como um complemento de renda. Aposenta-se cedo, continua a trabalhar, e passa a receber do INSS. Apenas os pobres, para os quais se trata de uma questão de sobrevivência, e para os funcionários públicos e outras corporações privilegiadas, para os quais se trata de perpetuidade do salário, a previdência é garantia de renda. Muitos poucos a vêem como um seguro de renda para o declínio da capacidade de trabalho, por velhice efetiva ou incapacitação.
Esse consenso, penosa e demoradamente construído, encontra-se com uma conjuntura socioeconômica beirando a depressão. O país vive real emergência econômica. O colapso fiscal é, também, verdadeiro e deprime a capacidade de ação dos governos em áreas essenciais, que afetam o bem-estar — já gravemente deteriorado — da população. É um fator ambiental que oferece a justificativa plausível para os políticos que compartilham desse consenso, mas temem o impacto negativo do apoio à reforma no seu eleitorado. Têm o argumento de que, sem a reforma não será possível ter investimentos para a retomada do crescimento, nem recursos adicionais para saúde e educação.
O fator político se desdobra em quatro. Um pragmático, associado ao colapso fiscal. Nele, há um componente de interesse imediato, o toma-lá-dá-cá entre votos na reforma e a liberação das emendas orçamentárias dos parlamentares. Com ela podem agradar eleitores, cabos eleitorais e fianciadores. Outro, mais de médio prazo, é que o desempenho na votação da reforma da previdência será considerado na obtenção dos apoios financeiros e extra-financeiros de campanha, tanto nas municipais do ano que vem, nas quais muitos dos parlamentares serão candidatos, quanto na reeleição dos parlamentares, em 2022.
O segundo fator político é composicional. As eleicões alteraram fortemente a composição da Câmara, trazendo alto percentual de novatos, e deslocando o centro para uma posição mais à direita. O consenso pró-reforma é mais forte, obviamente, entre os mais liberais.
O terceiro, é reputacional, está associado ao prestígio da instituição parlamentar. Vista com desconfiança pela população, associada ao clientelismo, ao fisiologismo e à corrupção — associação esta, que o presidente Bolsonaro nunca deixa de relembrar ao público — a Câmara aproveita a narrativa política de que assumiu o protagonismo decisório para transformar o consenso pela reforma em ativo que lhe ajude a conquistar parte da confiança social perdida. O presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ) conseguiu criar uma imagem confiável e de fácil circulação na mídia. Essa reputação aumentou sua capacidade de liderança, a qual, na origem, se assentava no conhecimento da cultura da Casa e na distribuição proporcional dos poderes na Câmara entre todos os partidos, inclusive os de esquerda. Pôde, desta forma, mobilizar um quorum robusto e facilitar a transformação do consenso geral em votação pluralista, com ampla margem de folga em relação à maioria constitucional.
Finalmente, este resultado, que se deu a despeito do presidente da República e apesar das dificuldades criadas pela contrariedade entre Rodrigo Maia e Bolsonaro, pela ação do Chefe da Casa Civil e pelos entrechoques com o ministro da Economia, fortalece a Câmara. Fortalecimento que era visto, com razão, por muitas lideranças, como imprescindível diante da atitude de confrontação adotada pelo presidente da República e das quebras de braço que ainda estão por vir, entre o Legislativo e o Executivo. Com a aprovação da reforma e essa nova força política, terá mais recurso para forçar o governo a concessões no manejo do orçamento e das nomeações.
Parte da esquerda ou da social-democracia já entrou no consenso. Alojada no PDT e no PSB, afastou-se da visão corporativista e votou a favor da reforma, embora continuem a se opor enfaticamente ao governo. O restante da esquerda, diante do fato de que a reforma estava nas mãos da Câmara e seu presidente e não de Bolsonaro, perdeu a oportunidade de, em atitude mais cooperativa, negociar alterações progressistas, que aumentassem o caráter redistributivo da mudança, eliminando pontos graves de desigualdade no regime previdenciário. Preferiu reforçar o antagonismo, necessário, ao presidente da República, e defender os interesses corporativistas, dos quais é caudatária. Perdeu, mais uma vez, a chance de combater os fundamentos institucionais da desigualdade permanente do país.