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O vírus e as presidências de confronto

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A pandemia global, criada por um vírus até então desconhecido, cujo nome é Sars-Cov-2 e que causa uma síndrome chamada Covid-19, está fora da zona de controle, de competência e de conforto desses governantes de ocasião. É irônico que tenham que enfrentar uma emergência virótica, após criarem vários surtos de contágio com seus memes. O meme é um vírus digital e sua propagação assemelha-se a um surto viral. Daí o verbo viralizar, isto é, espalhar-se como um vírus, num ciclo contagioso. Trump e Bolsonaro lidam bem com memes, mas se mostram incompetentes ao limite da irresponsabilidade para lidar com vírus reais.
Eles surgem, como escrevi aqui, em eleições atípicas que surpreendem os analistas e atropelam as expectativas. Eleitos, é a vez de serem surpreendidos no seu voluntarismo autoritário e arrogante pelo fato de que governar não é simples como lidar com seu público cativo, nem um reality show supostamente para escolher bons CEOs. Eles vivem do stress e do confronto. Somente assim, conseguem manter mobilizada a parte da opinião pública que capturaram com suas promessas tão grandiosas quanto vãs, por meio de uma vasta rede de bots e empresas de manipulação das redes. As crises por eles criadas para gerar memes agressivos fazem parte de sua estratégia política. Mas, não estão preparados para lidar com as crises exógenas e complexas como esta, nascidas fora da sua zona de controle.

A crise do petróleo, causada pelo enfrentamento entre um ditador monárquico, Mohammed bin Salman Al Saud, e um presidente russo autoritário, Vladimir Putin, agravou os efeitos recessivos globais da pandemia. A Covid-19 promoveu a paralisação de vários nódulos das redes globais de produção. Esta coincidência potencializa os desafios postos pela crise sanitária e econômico-social. Não se pode desprezar o risco adicional de governos ineptos agravarem o quadro com medidas insuficientes ou evidentemente erradas. Foi o que fizeram Trump e Mike Pence, seu vice. No Brasil, além do colapso fiscal do SUS, que precede de muito a crise da Covid-19, vivemos uma crise política que reduz ainda mais a baixa capacidade de resposta do governo e do sistema de saúde pública.

Não é incidental que Donald Trump e Jair Bolsonaro tenham minimizado o perigo representado por um surto de Covid-19. Os dois desprezam a ciência. Ela contraria seus interesses e devaneios com suas verdades testadas. Os dois manipulam a fé e a superstição das pessoas, para mantê-las crédulas de sua capacidade para encontrar soluções diferentes daquelas propostas pelos especialistas. Estes, segundo eles, são mal intencionados e têm suas ideias propagadas pela grande mídia, que distorce tudo contra eles. Na vida real, o vacilo dos dois custará caro a seus respectivos povos. Trump preferiu fechar fronteiras, uma de suas obsessões, a buscar soluções efetivas de contenção do contágio por um vírus que já é residente nos Estados Unidos. Está mais interessado em tentar salvar a economia, sem saber muito bem como, do que colocar o aparato federal à frente dos esforços para controlar o surto viral. No Brasil, o governo imagina que poderá enfrentar a crise econômica com reformas controvertidas de efeitos puramente estimativos no médio e longo prazo. Se aprovadas, quando começarem a ter resultados, ou o país já terá voltado ao fundo do poço, ou a crise terá passado, a despeito das políticas do governo.

O ministério da Saúde tem agido muito bem no plano da informação, da transparência e do aconselhamento à população, mas ainda não foi testado no âmbito concreto da assistência médica de massa. O teste virá, quando o número de infectados no país atingir o patamar epidêmico. O vírus já está residente entre nós. Quando iniciar a fase de contágio de massa, serão muitos os desafios a enfrentar. O principal caberá ao SUS e, subsidiariamente, à rede privada: teste, seleção, internação, tratamento. Neste, o principal gargalo será o número de kits de teste e de leitos nas UTIs. Pelo pouco que já se sabe, quanto mais gente testada, melhor. O outro será enfrentar o pânico e evitar a superlotação das unidades de saúde por pessoas assustadas com a possibilidade de estarem infectadas.

Era de se esperar que tanto Trump, quanto Bolsonaro passassem a tratar com mais seriedade a pandemia global depois de estarem expostos à possibilidade de infecção durante o convescote em Mar-a-Lago. Mas, continuaram a tratar o grave surto de forma pouco séria e muito imprópria. A reunião entre Trump e Bolsonaro, no resort privado do presidente, não poderia ser mais emblemática. Não só por ter se tornado uma fonte de infecção para o novo coronavírus, mas principalmente por ajustar-se, perfeitamente, ao comportamento incivil e pouco republicano dos dois. Afinal, era um exemplo cristalino das fronteiras difusas entre o público e o privado, o oficial e o familiar, típico no comportamento dos dois presidentes. Misturou-se um encontro de chefes de estado, o aniversário da namorada do filho do presidente que carrega seu nome, em um resort de propriedade da empresa do presidente. A promiscuidade do evento não escapou ao olhar atento do The New York Times.

O surto pandêmico entrou na sua fase de aceleração nos Estados Unidos e no Brasil. O número de casos pode aumentar muito rapidamente nas próximas semanas. Porá a teste a inadequada rede pública de assistência médica de ambos os países. Encontrará no comando presidentes que chegaram ao cargo de surpresa sem jamais terem se preparado para exercê-lo com grandeza e competência.

Publicado originalmente no Blog do Matheus Leitão/G1