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Um silêncio sem inocência

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De repente, a imprensa ficou sem manchete. Bolsonaro parou com seu falatório para a claque trazida para a frente do Palácio da Alvorada. Nela dava sua versão particular dos fatos e distribuía humilhações e agressões ao reportariado forçado a cobrir o patético stand-up presidencial. Fontes do Planalto atribuem este silêncio ao conselho dos “pragmáticos” do Palácio do Planalto e ao “grupo militar”. É uma versão positiva da mudança de atitude do presidente. Ela acalma o mercado financeiro, desejoso de o continuar apoiando, e agrada à parte moderada do Legislativo, também inclinada a ajudar o governo. Bolsonaro quebrou o silêncio apenas para anunciar que estava com Covid-19. E tudo voltou a ser como antes. Foi um anúncio manipulador, irresponsável, descuidado que, por seu tom e conteúdo, teve menos credibilidade do que seria de esperar para uma notícia dessas. Mas, as manchetes ressurgiram apesar de Bolsonaro ter convocado apenas dois veículos, em nova demonstração de desrespeito pela Presidência e pela liberdade de informação.

Mas, será mesmo que foi por ouvir a voz dos “pacificadores” que o presidente abriu mão daquele constrangedor espetáculo diário para uma claque treinadinha? Ele era diligentemente filmado por seus auxiliares, para ser disseminado para seguidores, mercenários das mídias digitais e robôs. Era uma peça importante de sua estratégia para agitar seus seguidores e alimentar a propaganda política. Será que aceitou reduzir o material com que sustenta suas redes por atender a conselhos sensatos, que jamais ouviu antes?

Eu prefiro a dúvida, à certeza, para chegar perto da verdade. A dúvida chama atenção para uma ausência eloquente nessa lista de boas razões para o silêncio de Bolsonaro. As investigações sobre a rachadinha e outros crimes, a prisão de Queiróz (aliás, cadê Márcia Oliveira de Aguiar, a mulher do Queiróz?). Fatos graves que envolvem o clã do presidente. Outro ponto sensível é o acordo com a banda podre do Centrão, sobre o qual escrevi aqui.

O silêncio de Bolsonaro ganharia outra dimensão, se sua origem forem os mecanismos típicos do modo defesa na política. Deixa de ser um silêncio inocente, influenciado por conselheiros que buscam baixar o estresse causado pelo presidente, e passa a ser um movimento autodefensivo e estratégico, atendendo a conselhos dos advogados. Para evitar a autorização parlamentar para que seja processado ou a aprovação de um pedido de impeachment, o presidente precisa moderar-se, cortejar mais do que a banda podre do Centrão no Legislativo e aproximar-se do presidente e do vice-presidente do Supremo Tribunal Federal. O atual, Dias Toffoli, em breve passará o bastão para o vice, Luiz Fux. Precisava, também, parar com as ameaças ao STF e ao Congresso, estancar seus ataques ao ministro Alexandre de Morais e ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Outra condição importante era interromper o apoio explícito às manifestações antidemocráticas, que avalizava com sua presença assídua e para as quais arrastava seus ministros, de preferência os de origem militar.

Tudo se encaixa no espaço da dúvida. Não existe um Bolsonaro pacífico e comedido, capaz de ouvir o aconselhamento da sensatez. Ele sempre será impulsivo e compulsivo, sempre terá impulsos autocráticos. Mas, sabedor de que dificilmente terá cobertura militar para abafar processos ou escapar da investigação de crimes que possam ter sido cometidos por ele ou seu clã, se vê forçado ao modo defesa. E, neste modo, não lhe sobra energia bélica para continuar com o ataque aberto às instituições, as ofensas a autoridades de outros Poderes republicanos e à imprensa. Tem que concentrar o que lhe resta dela para sua defesa e de seu clã e, também, ajudar os processados do Centrão. Para consegui-lo é importante capturar e controlar a PGR e a PF e transformar o ministério da Justiça em sede efetiva da advocacia da presidência. É o caminho para conter as operações anticorrupção e, de quebra, aumentar a censura e a intimidação dos adversários.

Ao anunciar que havia sido contaminado pelo Sars-Cov-2, Bolsonaro desprezou a doença, não mostrou qualquer preocupação com as centenas de pessoas que pode ter exposto ao contágio, não mudou de atitude em relação à tragédia epidemiológica e humanitária do país. É um homem sem compaixão, sem empatia pelo outro, sem sentido de humanidade. Em todas as suas atitudes, inclusive no uso de igrejas como palco de manipulação política, é um falso espírito cristão. Todos os seus comportamentos são farisáicos. A Presidência da República não apresentou nenhum protocolo para ser adotado pelo presidente ou para aqueles que estiveram com ele, nem para o período em que estiver em observação e tratamento. O poder Executivo, que deveria ser responsável pela estratégia e coordenação de medidas de segurança epidemiológica e bem-estar da população, tornou-se um vetor de espalhamento e prolongamento da pandemia no Brasil. Um caso óbvio de omissão de responsabilidade.

Bolsonaro montou uma tal farsa nas primeiras vezes em que alegou ter feito testes para Covid-19, apresentados em nome de laranjas, que ao mostrar o resultado de um teste RT-qPCR com seu nome estampado, pessoas de boa formação acadêmica duvidaram de sua veracidade. Depois de conhecido o diagnóstico, ele fez uma live que é um arremedo de um anúncio publicitário da cloroquina. Não ajuda no convencimento daqueles que duvidam de sua palavra. É o que acontece, quando se passa o tempo todo manipulando e negando a verdade, a ciência e o bom-senso. Perde-se a credibilidade. Aqueles que supeitam da veracidade do diagnóstico de Bolsonaro adicionam como ponto de dúvida o fato de ele não ter infectado nenhuma das pessoas que estiveram com ele quando já portava o vírus. Pelo menos até agora, autoridades que compartilharam ambientes fechados com Bolsonaro, estiveram muito próximas dele, no perímetro de propagação comprovada de perdigoto, sem máscaras, pegaram em sua mão, declaram ter feito testes com resultado negativo.

Bolsonaro fez tudo que os epidemiologistas dizem que aumenta o risco de contágio dos outros. Que não tenha passado o vírus para ninguém, pelo menos até agora e pelo que se sabe, é um mistério. Não é provável algo assim. Talvez não seja impossível. É preciso ouvir os especialistas. O tempo, de qualquer forma, imporá toda a verdade dos fatos. Uma coisa, porém, é certa. Bolsonaro usará a doença de forma distorcida para seus objetivos de propaganda e manipulação política.

Bolsonaro não faz política o tempo todo como dizem. Ele politiza tudo, de forma manipulada. É mais uma ação continuada de “agitprop”, muito parecida com as técnicas de agitação e propaganda dos facistas usadas para produzir fatos artificiais e com eles substituir os dados da realidade. É o avesso da transparência e da sinceridade. Bolsonaro não negocia, não conversa, não interage, não articula ou coordena. Ele manipula, confabula, ordena e reage por impulsos. É e será sempre uma mentalidade autoritária com um projeto autocrático. Seu silêncio nada tem de inocente. Ao quebrá-lo apenas para anunciar que seria portador de uma doença que já matou perto de 70 mil brasileiros e pode chegar ao dobro disso, em um ato de pura propaganda e evidente ilusionismo político, ele mostrou que continua o mesmo, apenas em modo de autodefesa.