O presidente deixou o sociólogo falar, em entrevista recente à imprensa, apresentando uma visão das transformações na estrutura ocupacional e de classes da sociedade brasileira. A análise está correta: nos últimos anos se acelerou um processo de mudança que teve início ainda na década passada, em que setores emergentes associados às novas estruturas econômicas ganham espaço, enquanto vários setores poentes vão perdendo força e importância. Formou-se uma nova classe média, totalmente privada, dentro dela cresce um segmento negro, mostrando que mesmo entre os setores discriminados os avanços da educação produziram mobilidade social. Surgiu uma nova classe empresarial, muito menos dependente do
Estado, exceto no que se refere às macro-distorções que persistem no sistema tributário, na legislação trabalhista e previdenciária, na logística e outras externalidades que aumentam o custo e a ineficiência ao longo da cadeia de produção e distribuição. Nos segmentos dos trabalhadores também surgiram novas categorias, sem a cultura corporativista do sindicalismo brasileiro.
São estas forças emergentes que, silenciosamente, vêm derrotando os candidatos tanto da velha esquerda quanto da tradição populista nas eleições presidenciais. Estão no núcleo central que deu a vitória a Collor e a Fernando Henrique, contra os seus concorrentes, todos eles mais ligados ao antigo establishment estatista e corporativista, à esquerda, ao centro e à direita. Foram estes mesmos setores emergentes que abandonaram Collor, ao se frustrarem com a transmutação do “caçador de Marajás”, em “marajá-mor”. São estes setores, em grande parte, que se sentem frustrados e desprotegidos toda vez que FHC se dedica a negociações e concessões aos representantes do velho Brasil. Toda vez que o presidente aparece fazendo a “velha política” perde pontos valiosos de apoio desses setores.
Não por acaso, ao falar como sociólogo e reconhecer a existência desse “Brasil emergente” produziu reações positivas. O jornal recebeu cartas de leitores identificando-se como parte das “novas classes” e apoiando idéias reformistas que têm difícil passagem no Congresso. Quando o presidente fala das forças da mudança, elas se identificam naquele retrato e reconhecem o presidente como interlocutor. A análise sociológica do presidente explica por quê: os setores emergentes da sociedade são estruturalmente mais fortes, caminham na direção de se tornarem dominantes, mas são politicamente fracos porque carecem de articulação e organização, têm baixa capacidade de mobilização, não estão representados nem pelos partidos, nem pelos sindicatos e associações.
Suas lideranças são novas e inexperientes e sequer ainda iniciaram, em muitos casos, trajetórias de vida pública. Como nasceram privados, esses setores são avessos à atividade pública, na qual vêem os vícios que têm vitimado o país. As forças poentes do país são politicamente mais fortes, controlam múltiplos mecanismos de representação, têm grande capacidade de articulação e mobilização e seus interesses são hiperfocados, dado que estão além da fase de amadurecimento, já no estágio de declínio. Os setores novos precisam, portanto, que lideranças independentes articulem seus interesses que ainda são difusos. Quando alguma liderança os reconhece e descreve seus interesses, eles se reconhecem no discurso daquela liderança e a apóiam. Esse apoio, contudo, porque inarticulado, só aparece sob duas formas: opinião pública favorável e voto.
O presidente teve os dois ao longo de seu primeiro mandato e os está perdendo agora. O presidente FHC deveria ouvir mais o sociólogo Fernando Henrique Cardoso para saber que seu futuro está nas mãos do “Brasil emergente”, ao qual ele deve dar voz, representando seus interesses ainda difusos, mas inequivocamente vinculados à estabilidade e à continuação da modernização do Brasil. As vozes do atraso ficarão cada vez mais fortes, num movimento inversamente proporcional ao seu declínio socioeconômico. É por isto que o Iedi exagera as condições do Brasil: generaliza a decadência e superação do grupo de interesses que representa. Se FHC articular politicamente as forças da mudança, estará criando as condições para seu fortalecimento e rompendo, gradativamente, a inércia comandada pelos defensores do status quo ante. E isto nada tem a ver com cesarismos ou autoritarismos, como dizem analistas integrados à velha ordem.
O Brasil emergente está esperando que FHC diga qual o seu projeto e, se vier a se reconhecer nele, vai revigorar o presidente politicamente, por intermédio do apoio social difuso de que é capaz, o qual se expressa na popularidade presidencial, que então FHC pode usar nas negociações com o parlamento, onde as forças do conservadorismo, à esquerda e à direita, são mais fortes. Há muitos parlamentares que se unem às forças da conservação e do atraso apenas porque ainda não identificaram entre seus eleitores essas forças emergentes da renovação. Elas estão lá, mas é preciso que as lideranças mais dotadas as revelem para eles.
Em próximo artigo, analisarei esta dinâmica contraditória de forças emergentes estruturalmente dominantes, mas politicamente fracas e forças poentes estruturalmente fracas, porém politicamente dominantes. Ela é a chave para os cenários futuros de longo prazo brasileiros.
Opinião:
Demandas Inflacionistas: Emergentes vs Poentes – Setembro/ 99
Sérgio Abranches
Há muita demanda inflacionista no ar. Nisto o ministro Malan tem razão. Ela vem disfarçada em felicidade geral, política industrial, empresa nacional forte, flexibilização de dívida estadual, calotes disfarçados e por aí vai. A quem interessa a saída inflacionista? Aos setores poentes da sociedade: aqueles que perderam densidade e/ou substância econômica, mas ainda comandam recursos políticos. Quem a saída inflacionista prejudica? Aqueles setores emergentes, que estão crescendo, aproveitando as oportunidades criadas pela mudança e pela estabilidade, que têm substância econômica, mas ainda não comandam recursos de poder.
Toda sociedade que muda tem forças emergentes e forças poentes. Os emergentes têm futuro promissor, pois estão avançando, crescendo, ocupando espaços. Mas por serem novos, não estão organizados politicamente, seus interesses são mais difusos e gerais, não têm lideranças constituídas, nem tempo para se envolverem na advocacia de seus interesses. Sequer conhecem os caminhos percorridos pelos lobbies nem têm conexões no Congresso e no Executivo.
Os poentes, por serem mais antigos, estão muito bem organizados politicamente, têm lideranças conhecidas, relações com o Congresso, a mídia, a burocracia governamental e as organizações de promoção de interesses. O futuro dos poentes não é necessariamente a morte. Se aceitarem mudar, se aprenderem os novos caminhos que levam ao sucesso, podem dar a volta por cima. Mas, como têm força política desproporcional à sua importância econômica real, terminam por preferir resistir à mudança e forçar a sociedade ao retrocesso. Podem até conseguir, mas será uma vitória falsa e temporária, que se transmutará em crise, a qual levará o país para o rumo dos emergentes a um custo maior.
A maioria da sociedade brasileira já está vinculada aos setores emergentes. Sabe que a inflação lhe faz mal. E faz mesmo. A inflação não resolve problemas, foge deles. Ela ilude os perdedores e faz vencedores sem mérito. Quem, entre os emergentes, não se lembra dos tempos em que a caderneta de poupança dava resultados de 50%: 49,5% de ilusão e meio por cento de ganho real? Que família de classe média não se lembra do fluxo de caixa estourado porque a mensalidade escolar corria mais rápido do que o salário? É por isto que qualquer pesquisa de opinião indicará que a maioria, cujos únicos recursos políticos são a opinião anônima e o voto secreto, prefere fazer sacrifícios para vencer definitivamente a inflação.
A inflação financiou algumas dezenas de famílias ricas brasileiras, às custas do salário da maioria, em nome da defesa da empresa nacional. Defesa feita pelas organizações corporativistas da minoria empresarial que sempre viveu às custas do Tesouro Nacional. Transferiu renda para milhares de famílias ricas, para que seus filhos estudassem de graça em universidades públicas e gratuitas de qualidade, enquanto os filhos dos pobres pagaram para estudar em faculdades noturnas, pagas, de qualidade inferior. Algumas até terminaram por investir em qualidade, tal a demanda. E isto foi feito em nome da demanda inflacionista, de ensino gratuito para todos, sob o comando da UNE. Engordou contas puramente financeiras, enquanto minguaram as contas associadas à produção. Financiou o calote agrícola, reduzindo a oferta de alimento e aumentando o seu preço, fazendo com que a alimentação devorasse a maior parte do salário do trabalhador. Hoje, o trabalhador “come” estabilidade, sob a forma de mais leite, mais carne, mais frango, mais iogurte. Agora, querem a inflação de novo, com outros nomes, é claro, em favor da “produção”. Atacam o maldoso neoliberalismo, insensível diante do sofrimento do povo, que não tem mais inflação.
Vivemos hoje o ponto crucial da transição. Os inflacionistas têm poder de pressão. Têm espaços cativos na mídia. É possível lê-los até nas publicações de bordo, na ponte aérea. Os emergentes, que não são neoliberais, são antiinflacionistas, têm a razão e o futuro na mão. Neste caso, só o governo, com obstinação e fazendo ouvidos mocos às vozes poentes, que um dia se calarão, pode articular, expressar e realizar a demanda dos emergentes, assegurando-lhes a estabilidade. É este o desafio histórico de Fernando Henrique, Pedro Malan e Pedro Parente.