O Brasil está voltando ao passado dos outros. Se olharmos o que as redes bolsonaristas e o próprio programa do candidato dizem, teremos a impressão de vivermos em plena Guerra Fria, ali pelos idos dos anos 1960. Naquele período, em todo o mundo dito “ocidental”, em particular nos Estados Unidos, era possível ler alertas sobre o “perigo vermelho”, ou a “ameaça comunista”. A União Soviética era poderosa, dominava meio mundo e se dizia “socialista” ou “comunista”. Se lembrarmos que as redes do PT tratavam como “reacionários”, “neoliberais” ou “facistas” os críticos, mesmo da esquerda, veremos traços dos conflitos europeus, da época de formação de ondas que levaram ao nazismo e ao fascismo, lá pelos anos 1920. Rótulos sem significado, em todos os casos descarnados da informação que lhes deu sentido, são “ressignificados” — que palavra horrorosa — para desqualificar o “outro”. Não temos referentes históricos para nada disso. Nunca tivemos comunismo, nazismo, fascismo, anarquismo, nem mesmo liberalismo. Até porque, tropicalizamos tudo. Basta examinar com cuidado a quantidade de sincretismos embutidos na doutrina e na prática do integralismo, de Plínio Salgado, nosso modelito de fascismo da época. Ou no comunismo afro-baiano de Jorge Amado. Ou no liberalismo de Roberto Campos, o arquiteto do BNDES.
Mesmo naquelas partes do mundo, onde essas correntes ideológicas de fato existiram, hoje seus rótulos perderam o conteúdo original e passaram a significar um aglomerado de valores e preconceitos alimentados pelas dúvidas e temores de um tempo em que seu mundo desmorona e se assustam com o que parece ser o “outro mundo”, o mundo a vir a ser. Como ninguém é capaz de prever como serão as sociedades do futuro, constroem distopias ameaçadoras com as ideias que atribuem aos “outros”, àqueles que pensam, são ou agem diferente.
Milhares de alemães foram às ruas contra o crescimento do AfD, o partido de extrema direita. Hoje, (14/11), a Bavária vota para formar seu novo governo. Eleitores que, na maioria, têm votado na centro-direita, o CSU, um dos pivôs dos governos de Angela Merkel, estão se dividindo entre a direita e a esquerda. Essa polarização, que esvazia o centro, está acontecendo em vários países, inclusive entre nós.
Na China, quem se considera de “esquerda”, hoje, é nacionalista, antiglobalização, a favor da economia estatizada e acredita nos valores tradicionais do confucionismo, não acredita na democracia e vive no interior, ainda não alcançado pelo longo ciclo de forte crescimento econômico trazido pela abertura ao mundo. Quem se considera “liberal”, é internacionalista, a favor da globalização, defende a economia de mercado, é a favor da democracia e considera os valores tradicionais ultrapassados. Vivem nas áreas afluentes criadas pela abertura de oportunidades à iniciativa privada, do “socialismo de mercado”. É possível encontrar traços dessas duas posições, nas doutrinas dos governos chineses, desde a abertura de Deng Xiaoping.
Mas, a extrema direita tem uma doutrina econômica elaborada, um projeto político de poder claro e diferente, uma concepção própria do estado, uma visão cultural diferenciada? Não. Tem um coquetel de ideias nacionalistas, anti-imigração, conservadorismo. A maioria se identifica por oposição à globalização, à imigração, ao casamento gay, ao aborto. É menos um confronto entre ideologias e muito mais uma rivalidade entre times adversários. Com a polarização e a exacerbação das emoções políticas, as torcidas só têm hooligans prontos a destruir o “outro”. Às vezes a violência tem sido física mesmo, com linchamentos e mortes de antagonistas. Mas, na maioria dos casos, trata-se de trolagem, de assédio e desqualificação nas redes sociais. Nelas, formam-se milícias digitais, com bots, mercenários e seguidores fervorosos, beirando o fanatismo, que se dedicam a perseguir, difamar e agredir moralmente, quem pensa diferente. Trump, Putin, todos os governantes com mentalidade autoritária as usam.
Há bastante evidência de pesquisa em psicologia social e política mostrando que esses coquetéis de valores não surgem da noite para o dia. Permanecem latentes nas mentes das pessoas, até que algo os ativa com força, fazendo-as passarem a defender ardentemente seu grupo de iguais em pensamento e palavras. Como diz o psicólogo Jonathan Haidt, um conservador moderado, a globalização tornou a maioria das nações mais afluentes e trouxe muitas mudanças que mudaram os valores de suas elites urbanas. Mais que isto, aumentou as desigualdades internas e deixou muitos setores para trás. Essa mudança aumentou o contingente de portadores de valores novos, inovadores e, para muitos, chocantes. Ao mesmo tempo, provocou uma onda silenciosa de ressentimentos. Mentes ressentidas são frágeis diante da pregação dos males que as afligiram e prontas a dar um reboot autoritário e discriminatório. Esse amálgama de valores se estrutura de forma diferente em cada pessoa, com intensidades e combinações distintas. Elas continuam sendo portadoras de interesses muito distintos. Umas são, inclusive, objeto de discriminação de outras, embora partes do mesmo caldeirão de emoções.
O que as pode unir? Só um discurso bem básico, geral, apelando diretamente para suas aflições principais. Donald Trump, Nigel Farage, o líder do UKIP, o partido ultranacionalista britânico, Jörg Mauten, líder do AfD, o partido de ultradireita alemão, como Jair Bolsonaro, têm um discurso desse tipo, básico, com um vocabulário limitado, palavras de ordem fortes e adjetivos agressivos em relação ao que pensam os “outros” ou ao que desejam descartar. Esses memes, como disse Haidt, ativam os valores mantidos reclusos nas mentes e empurram as pessoas a defender os “seus” e atacar a “eles”. É como se tivessem um botão de pânico na mente e esses líderes conseguissem apertá-los, detonando neles o hooligan interno. A imagem do botão é de Haidt, para falar do automatismo das reações. A frase, com suas conotações do espírito antiesportivo que invade os esportes, é minha. Esporte pressupõe competição e superação. A ideia de eliminar o competidor é antiesportiva por natureza. Transposta para a política é antipolítica e antidemocrática. O mundo vive, em muitas partes esse transe hooliganista, à esquerda e à direita. Nas mentes desses ativados para o desatino hooliganista, o mundo passa a dividir-se entre “comunistas” e “fascistas”, “terroristas” e “nazistas”, “fundamentalistas” e “democratas”. Não há lugar para terceiros. Não é “nós”, então é eles.
A esperança da democracia está na diversidade de valores e expectativas dessas pessoas, ativadas por um cardápio básico, que não revela o que serão de fato os governos. Uma vez lá, eles não são capazes de atender à maioria das demandas que as pessoas depositaram neles. Não há como. O cardápio limitado foi interpretado, às cegas, por cada um. Quando ele é servido, decepciona. A frustração faz refluir a onda do mesmo modo automático com que ela se formou. Dependendo da intensidade, esse refluxo é vertiginoso e deixa os governantes em um deserto de apoio social, sustentado em um punhado de crentes fervorosos na liderança. O perigo é não haver inteligência política disponível, no refluxo capaz de recentralizar o sistema e livrá-lo das mentes autoritárias.
Publicado originalmente no Blog do Matheus Leitão, G1: https://g1.globo.com/politica/blog/matheus-leitao/post/2018/10/14/o-mundo-se-divide-por-causa-de-rotulos-vazios.ghtml