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Não é o fim do mundo

  • Categoria do post:Política

As ondas de descontentamento e aflição que derrubam lideranças e construções político-ideológicas em todo o mundo, fizeram sua primeira vítima notável na França. O presidente François Hollande anunciou inédita renúncia à reeleição. Pela primeira vez, um presidente francês deixa de postular a recondução ao cargo. Talvez somente quando Hollande escrever suas memórias — e mesmo assim, se for sincero— saberemos se foi a rejeição popular, medida nas pesquisas de opinião, ou a convicção de que não seria capaz de liderar a França nesse momento de desafios em todas as dimensões, que o fez retirar-se. Ou nenhuma dessas razões.

Os socialistas franceses namoraram atitudes que seriam mais próprias da direita, movidos pela perplexidade desses tempos líquidos, nos quais tudo que é sólido é derrubado pelas vagas dessa transição. O partido tem muitos candidatos. É quase certo que Manuel Valls, primeiro-ministro, se apresentará às primárias socialistas. Quem sabe Ségolène Royal, derrotada por Hollande, queira tentar novamente agora? São muitos os candidatos possíveis, mas nenhuma liderança expressiva, unificadora, à altura das lideranças incontestes do passado. A esquerda se divide, haverá candidatos independentes, buscando o voto progressista, em concorrência direta com a candidatura que sairá das primárias do PS. Yannick Jadot foi o vitorioso das primárias dos Verdes. Jean-Luc Mélanchon, concorrerá novamente pela esquerda da esquerda. A França nunca foi realmente bipartidária, embora desde o início da V República, inaugurada com a constituição gaullista de 1958, o poder tenha sido ocupado alternadamente pelos socialistas e pela centro-direita. O partido da centro-direita, porém, sempre teve sua denominação e sua arquitetura interna redefinidas pela liderança pessoal da hora: Pompidou, Giscard d’Estaing, Chirac, Sarkozy. Na extrema direita, o clã dos Le Pen domina. A mesma coisa se repete na chefia do governo, em que os primeiros-ministros que se revesaram Pompidou, Chaban Delmas, Chirac, Balladur, Jupé, Fillon. Este último, premiê no período de Sarkozy, foi escolhido no segundo turno das primárias do agora Republicanos, nome dado ao principal partido da direita por Sarkozy. O ex-presidente foi derrotado por Fillon e Juppé, que disputaram o segundo turno. É pouco provável que esse revezamento continue incontestado.

O PS francês perdeu o rumo há muito. Não foi capaz de conceber uma agenda para esses novos tempos de perplexidade, medo e confusão. A esquerda ainda não entendeu a dinâmica da transição que atravessamos. Não só na França. No mundo todo, a esquerda, o socialismo democrático (ou a social democracia) não soube se reposicionar. Na Espanha, o PSOE, também sem liderança notável, se autoimolou. Permitiu à direita formar um novo governo, ao se abster de votar contra seu principal adversário, Mariano Rajoy.

Os progressistas deixaram de entender as necessidades desse mundo em transformação, que envelhece suas convicções e seus modelos de análise. A direita retira sua agenda do fígado dos eleitores e dos impulsos do capital financeiro globalizado. Capitalizam os sentimentos à flor da pele, mas governam para aqueles que saem ganhando dessa fluidez global. Duram pouco no poder, porque se tornam rapidamente o objeto direto da ira popular. O nacionalismo protecionista, a rejeição dos migrantes contratam rapidamente nova volta no ciclo de crise e a revolta dos discriminados. Desconforto econômico e tensão social, que frequentemente transbordam para a violência. São momentos de crise recorrente e governos efêmeros, esses que vivemos no mundo todo.

Por isso não importam os personagens, na França, na Espanha, na Grécia, no Brasil. Nem os detalhes. O que importa é o roteiro. É como se as sociedades vivessem ao sabor de uma série do Netflix, com o mesmo enredo global, mas personagens e cenas formatados por um algoritmo focado no local. Uma série francesa, sintonizada no contexto francês, outra espanhola, outra grega, outra americana, outra brasileira, e assim vai. Mas, roteiro global. Até na reação antiglobalização. Tipo, tem que ter: problema de imigração, nacionalismo antiglobalização, rejeição ao governo, desencanto com a democracia. Como mostrar, os trending topics locais é que definem. As idas e vindas, os avanços e tropeços são como que ditados pelos sentimentos e pelas reações amplificados nas redes. As agendas são construídas pelos trending topics, são reativa, não proativas. Improvisadas, não planejadas.

É a ressaca do século. As ondas sucessivas de mudança destróem os pilares das sociedades, sem revelar os novos. Olhados da perspetiva de hoje, tudo parece ruína, os escombros do velho mundo e as fundações imprecisas do novo. Há muito coisa fora do ar na nova ordem mundial. Os interesses em conflito não se dissiparam, mas se truncaram. Por isso a esquerda que se sempre se valeu de modelos de conflitos estruturados, se perdeu. São conflitos de determinações menos precisas, na fronteira entre as disfunções da ordem em colapso e as formas emergentes, em desordem. Saímos da ordem para o caos e não sabemos o caminho da nova ordem. O contexto não permite imaginar os direções nas quais a ordem advirá do caos, ordo ab chao. Uma transição de postos de trabalhos destruídos para sempre, enquanto as ocupações da nova economia ainda são muito poucas e muito diferentes. Redução dramática da base manufatureira e crescimento exponencial de serviços em rede. Dissolução da propriedade no compartilhamento, uberização, airbnbização, autolibzação. spotfyização, netflixação… Para o marxismo significaria redução da base de extração de mais valia, encurtamento das possibilidades de lucro pelo capital produtivo. Esse mundo acabou, mas não é o fim do mundo. Ou a esquerda encontra um caminho plausível e convincente para uma travessia progressista, ou faz como o PSOE na Espanha e se rende à direita.

É tudo efêmero, passageiro. Nuvem. As transformações se dão em todas as dimensões da vida e estão muito no começo. Há muita travessia antes de chegarmos ao novo mundo do século XXI. Mas ele é inevitável e é para ele, não para o passado, que a esquerda terá que encontrar uma narrativa, para chegar a uma agenda da transição. Essa é a única agenda que lhe dá alguma chance de sobrevivência.