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Estados Unidos chegam ao dia D da democracia

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Amanhã, quando abrirem as urnas nos Estados Unidos, quase o mundo inteiro prenderá a respiração. As emissoras americanas como CNN, ABC, NBC, MNSBC e Fox terão picos de audiência global. MNSBC é antípoda da Fox. A primeira, tem viés progressista, a outra, conservador. Pode ser preciso muito fôlego para esperar em apneia o resultado das eleições. São todas decisivas, para a presidência e para as duas Casas do Congresso. Elas representam um desafio existencial para a democracia americana e um momento crítico para a geopolítica global. É um momento eleitoral muito diferente, com muitas singularidades. Esta eleição não é a respeito de Biden. É um referendo sobre Trump e seu desempenho nos últimos quatro anos.

As pesquisas este ano são muito diferentes das pesquisas de 2016, que previram a vitória de Hillary Clinton no voto popular, mas erraram o resultado nos colégios eleitorais, que é o voto determinante. Este ano, os responsáveis pelas pesquisas corrigiram os erros de amostragem e ponderação que usavam. Os agregadores de pesquisas mais respeitados, Nate Silver e Real Clear Politics adotaram critérios objetivos de qualidade para selecionar as pesquisa que entram em seus modelos e em suas médias. Os resultados têm sido muito mais estáveis ao longo das semanas mostrando muito pouca volatilidade. A vantagem de Biden tem se mantido consistente, com oscilações dentro da margem de erro. os modelos probabilísticos são todos favoráveis a Biden. A exceção é o modelo da Fox News, que dá vitória a Trump.

Eleição é como jogo de futebol bem disputado, só termina, quando o juiz apita o término. Até lá, pode acontecer de tudo. Fatos inesperados podem afetar a decisão dos eleitores. Podem virar seu voto ou fazê-los desistirem de votar. Esta semana, Nate Silver aumentou de 87%, para 90% a probabilidade de vitória de Biden. Mas, chama atenção que 10% de probabilidade não são descartáveis. Apenas tornam o resultado mais difícil de acontecer. É isto, o caminho da vitória é mais estreito para Trump, do que para Biden.

Uma das razões para dar a Biden probabilidade tão alta de vitória é que ele tem muita chance de ganhar pelo menos seis dos doze maiores colégios eleitorais e tem alguma vantagem em outros dois. Alguns destes estados, como a California, são certos para Biden. A California é tradicionalmente Democrata. Se ele ganhar nos seis em que dificilmente perderá, conquistará, de cara, 154 votos. Como se sabe, são necessários 270 para vencer a eleição. É a metade mais um dos 538 votos do colégio eleitoral, que ao fim e ao cabo, elege o presidente. Nesta hipótese, Biden teria 56% dos delegados necessários para vencer e iria buscar o restante nos outros estados. Mas, Florida e Georgia estão mostrando empate, um pouquinho inclinados para o Democrata. Se Biden ganhar nestes dois estados, seriam mais 45 votos, totalizando 199. Teria andado 74% do percurso necessário para chegar à Casa Branca. Só com os grandes colégios eleitorais. O resto é garimpagem voto a voto nos estados menores. Uns são Democratas e estão garantidos. Outros oscilam e têm possibilidades de virar a eleição para um lado ou outro. Se cada um dos candidatos ganhar em todos os estados onde estão pelo menos 5 pontos à frente nas pesquisas, o melhor cenário possível, Biden teria 305 delegados e Trump 126. E ainda haveria os estados onde estão empatados para somar-se a estes votos. Por isto está tão difícil para Trump.

São exercícios como este que fazem os analistas dizerem que há mais caminhos para Biden alcançar a vitória. Trump tem um trajeto muito mais apertado, sem atalhos ou desvios para chegar lá.

As eleições nos Estados Unidos são muito pouco democráticas. Têm quase todos os mecanismos de filtragem de votos típicos de regimes oligárquicos. O voto de delegados do colégio eleitoral vale mais do que o voto popular. Os Legislativos estaduais e os governadores têm grande poder de definir e mudar regras. Os estados menos populosos têm peso relativo maior. Vejam um exemplo. No Wyoming, estado menos populoso do país, um voto no colégio eleitoral representa 193,000 residentes, com base no censo de 2019. No Texas, que tem população maior do que 35 dos 50 estados e do Distrito de Columbia, tem 38 votos eleitorais. Cada voto representa 763,000 cidadãos. Na California, maior colégio eleitoral, com 55 delegados, um voto representa 718,000 eleitores.

Uma boa parte desta arquitetura eleitoral, complexa e discriminatória, foi desenhada após a franquia eleitoral para os negros, com o objetivo claro de evitar que eles pudessem tomar o poder. Décadas depois, quando, finalmente, chegaram à Casa Branca com Barack Obama, a sociedade branca e racista acordou, radicalizou a polarização e terminou por eleger Donald Trump. Os movimentos supremacistas saíram das sombras e tomaram as ruas, com seus rifles, tochas e suásticas. Trump incentivou. Apenas pediu, na campanha, que recuassem e esperassem, stand back and stand by, ele disse para a milícia supremacista branca Proud Boys.

Um outro grande diferencial na eleição de 2020, em comparação com a de 2016 é a pandemia. É um fator de peso que não pode faltar em qualquer análise do processo eleitoral deste ano. Afetou muito negativamente a avaliação de Trump. Sua reprovação popular está em 53% na média das últimas 10 pesquisadas compiladas pelo Real Clear Politics. Ele se comportou muito mal, desprezou a ciência, politizou o uso da máscara, subestimou a letalidade da Covid-19. O comportamento dos dirigentes incidentais como ele, Boris Johnson, no Reino Unido, e Bolsonaro seguiu padrões similares. Bolsonaro, uma cópia sem originalidade de Trump, fez tudo como ele. Nos estados em que Trump têm feito comícios com a presença de grande número de seguidores, sem máscara, aumentou o número de casos. Não quero dizer que haja uma correlação clara, entre as aglomerações de Trump e a disseminação da doença. Mas, o fato de que a segunda onda está atingindo mais fortemente os estados mais republicanos e de direita, está certamente associado à recusa política do uso da máscara como proteção necessária.

A pandemia também teve impacto na dinâmica das eleições. Os mais idosos, que votaram proporcionalmente mais em Trump, em 2016, estão se sentindo muito mais ameaçados pela Covid-19 e a maioria esmagadora deles, conhece pessoas que morreram da doença, parentes, amigos ou conhecidos. As pesquisas estão mostrando que muitos, que sempre votaram Republicano, pretendem votar em Biden este ano. Esta mesma reação tem sido captada em outras faixas etárias, em outros grupos de eleitores republicanos e na maioria dos independentes. Nesta eleição, os eleitores julgarão Donald Trump e Joe Biden sairá vitorioso se o julgamento for negativo para o presidente.

Outra mudança importante no comportamento eleitoral determinada pela pandemia é o recorde histórico de voto antecipado e de voto pelo correio. O voto postal é, na maioria, de idosos e outros grupos de risco e tende a ser contra Trump, por isto ele está abrindo uma lawfare, uma guerra jurídica para impugnar este voto. Tem perdido várias destas batalhas. O voto antecipado, mas presencial, também tende a ser mais contrário a Trump. Vários estados abrem as urnas para votação dias antes do dia oficial da eleição. Como os eleitores antiTrump sabem que eles farão tudo para dificultar seu voto, principalmente se forem negros, latinos ou asiáticos, preferiram votar antes, para evitar filas e outros embaraços.

Trump joga sujo o tempo todo. Mostra a insegurança com o resultado final. Em vários estados Republicanos, ele está vendo seu apoio se esfumaçar. O analista Nate Silver, dá empate com ligeira vantagem de Trump no Texas e resultado apertado, ligeiramente favorável a Biden, na Georgia. Os governadores republicanos dificultando a votação nos locais de maioria Democrata, suprimindo postos de votação para provocar longas filas e incentivar desistências. Ambos são considerados estados de resultado imprevisíveis, do tipo que resolve no “cara ou coroa”, com chances praticamente iguais de um ou de outro. Isto ocorre em outros estados também. As carreatas de Trump bloqueiam estradas e pontes, para obstruir o caminho do voto. Impedem as carreatas de Biden de circular. A polícia nada tem feito. O FBI, após vários incidentes, passou a investigar esses casos. Muitos comentaristas têm apontado para o risco de violência nas eleições, com milícias supremacistas atacando filas de eleitores com maioria de negros, latinos e asiáticos. Pelos numerosos casos de assassinato e fuzilamento de negros por policiais brancos em vários estados, não pode contar com a polícia para garantir a ordem nos locais onde os negros votam.

Está em jogo a democracia americana, mais do que quatro anos adicionais de Trump na presidência. Os Democratas estão prestes a acabar com a supremacia do colégio eleitoral na eleição para presidente. Terão que enfrentar uma batalha judicial, para isto, embora as leis estejam aprovadas em número suficiente de estados e o acordo pela mudança ratificado pelos legislativos estaduais. Se os Democratas conquistarem a Presidência e a maioria no Senado, além de manter a maioria que já têm na Câmara, podem aprovar uma lei federal nos mesmos termos do ato aprovado pelos estados. Mas os Republicanos irão à Suprema Corte, um campo de jogo desnivelado para a direita com as nomeações ultrarradicais de Trump. Hoje, a questão é saber como votarão os conservadores mais antigos da corte, se acompanharão a ortodoxia ultradireitista dos dois novatos, ou se tenderão a moderar seus julgamentos, evitando abalar os pilares da democracia que a ultradireita quer demolir.

A ultradireita é autocrática, intolerante, machista, homofóbica e racista. Ela alarga o impulso supremacista para que alcance todos os diferentes e garanta a hegemonia dos homens brancos. Trump é o autocrata que não esperavam e surgiu de surpresa no cenário de 2016, para cumprir esta tarefa. Conseguiu infectar uma boa parte do partido Republicano. É um governante incidental, eleito numa eleição atípica e que agora enfrenta um referendo decisivo para ele e para a democracia americana. A eleição para o segundo termo é o desafio para este tipo de governante, que perde o apoio dos moderados que votaram nele iludidos, e para a sociedade, por que o segundo mandato é aquele em que ele fazem o ataque final aos fundamentos da democracia.

Os governantes incidentais são ameaças existenciais à democracia. No primeiro mandato, eles atacam a democracia por dentro, testando seus limites e desmontando o que podem do sistema de freios e contrapesos que a defende dos abusos autocráticos do poder. Estimulam milícias e grupos extremistas a ir para as ruas. Na reeleição, se não conseguiram manipular o processo o suficiente para definir o resultado a seu favor, eles são julgados. A eleição se transforma em um referendo confirmatório. Se são reeleitos, o segundo mandato é aquele em que buscam passar ao regime autocrático destruindo as últimas defesas da democracia. Trump, por exemplo, já conseguiu viciar uma delas, numa votação moralmente condenável do Senado, ao confirmar o nome por ele indicado para a Suprema Corte na undécima hora deu seu mandato. No governo Obama, o Senado recusou-se a aprovar o nome que ele havia indicado para uma vaga na Suprema Corte, onze meses antes das eleições, alegando que o justo seria esperar o resultado das urnas.

Trump e o senador por Kentucky Mitch McConnell, o líder da maioria no Senado, atuaram como os maiores demolidores da democracia americana, desde a época do senador por Wisconsin, Joseph McCarthy e do maccarthismo, nos anos de 1950. O segundo mandato é muito mais perigoso, por isso, todos os democratas do mundo ficaremos praticamente sem respirar, até o resultado das eleições. E o apito final pode demorar bastante. Alguns estados têm contagem lenta, levam dias para totalizar seus votos. E há, ainda, que se esperar prorrogação judicial maliciosa para ver o que acontecerá com as tentativas de impugnação de votos por parte de Trump.