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A incerteza do voto

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Eleições democráticas têm uma virtude que, às vezes, parece um defeito. Elas são sujeitas a surpresas. Eleições com resultados sempre previsíveis são sintoma de que algo vai mal na democracia do país. O fator surpresa pode revelar fragilidades e fissuras na sociedade, produzindo resultados inesperados, contra a própria democracia ou reduzindo a possibilidade de boa governança. Estados Unidos e Brasil votaram, democraticamente, contra a democracia. Israel, em oito dias, pode votar contra a alternância no poder. Em outros países, o voto busca mais democracia ou volta-se contra as oligarquias dominantes.

A Eslováquia surpreendeu, elegendo sua primeira presidente mulher, uma advogada sem experiência política que focou sua campanha na luta contra a corrupção. Zuzana Caputavá, do pequeno partido Progressista, que sequer está representado no parlamento, ganhou popularidade em batalha jurídica contra um aterro sanitário ilegal, que durou 14 anos. Teve papel importante, também, nos protestos que se seguiram ao assassinato de Jan Kuciak e sua noiva. Kuciak, um jornalista investigativo, vinha revelando um esquema de corrupção no governo envolvendo a máfia italiana. Os protestos levaram à renúncia do primeiro-ministro Robert Fico. Caputavá foi eleita no segundo turno contra o conservador Maros Sefcovic, vice-presidente da União Europeia, e teve o apoio do presidente Andrej Kiska, que decidiu não buscar a reeleição. A presidência na Eslováquia tem poderes moderados de veto. Mesmo sendo uma presidência fraca, está sendo vista como um sinal forte e o primeiro resultado concreto do desejo de mudança, contra elites corrompidas.

Na Ucrânia, país que vive a angústia do controle russo opressivo, mas tem vasta população russa na sua parte leste, duas lideranças tradicionais, o presidente Petro Poroshenko e a ex-primeira ministra Yulia Tymoshenko, ambas envolvidas em escândalos de corrupção, estão perdendo nas pesquisas eleitorais para um não-político. Quem lidera as preferências populares é o ator de televisão Volodymyr Zelensky, cujo programa, Servidor do Povo, é uma sátira política na qual um cidadão comum, um professor de colégio, se torna presidente por acaso. A ficção ameaça se tornar realidade. Zelenski em nada se parece com o humorista italiano Beppe Grillo, que chegou ao poder pela ultradireita, com opiniões próprias fortes e sem conexões políticas ou empresariais.

Suspeita-se que Zelenski seja o peão do oligarca ucraniano Ihor Kolomoisky, rival de Poroshenko. Kolomoisky vive em Israel, após deixar o país para se livrar de um escândalo de corrupção bancária. O programa de Zelenski passa em seu canal de TV e ele tem negócios com o oligarca. Zelenski disputará o segundo turno com o presidente Proshenko, em vantagem. Mas a eleição está longe de decidida. Foram 39 candidatos e muita desesperança. Os ucranianos têm sido quase unânimes no sentimento de que vivem dominados por oligarquias, das quais querem se ver livres. A Ucrânia tornou-se independente da União Soviética em 1991, mas jamais se livrou da Rússia. Com Putin, vive tutelada, sob a ameaça de invasão. A delicada posição geopolítica interfere no cálculo do eleitorado, mas o fator dominante é o cansaço com o domínio oligárquico doméstico.

Em Israel, Benjamin Netanyahu antecipou eleições na tentativa de se perpetuar no poder. A repressão na Faixa de Gaza é um ato que agrada a uma parcela ainda majoritária de israelenses. O reconhecimento do direito de Israel sobre as Colinas de Golam por Donald Trump foi um ato combinado de campanha. A visita de Bolsonaro interessa mais a Netanyahu como propaganda, do que por qualquer razão estratégica ou geopolítica. As pesquisas indicam um eleitorado inclinado para a direita, o que favorece sua reeleição. A fragmentação em facções cada vez mais divergentes, todavia, pode indicar o desejo de mudar.

Na Espanha, as pesquisas apontam para mais um impasse e a necessidade de uma coalizão com maioria precária. O PSOE, partido na frente das preferências, não fará maioria e o Podemos, seu aliado mais natural, vem definhando nas intenções de voto dos espanhóis. O Ciudadanos (Cs), de centro-direita, mantém-se forte na terceira posição. É a esperança do conservador PP para retornar ao cargo de primeiro-ministro, numa controvertida aliança com o Cs e o ultradireitista Vox, que pode chegar ao parlamento pela primeira vez. Os espanhóis estão descontentes e divididos e esse sentimento reflete-se em governos efêmeros.

Não importam os resultados, o mais importante é que as eleições sejam disputadas por regras democráticas e mantenham sobretudo os detentores do poder na incerteza sobre seu destino político. É auspicioso que as urnas revelem escolhas distintas mundo afora, elegendo novatos progressistas, neoconservadores, derrubando oligarquias, formando governos à esquerda e à direita. Há desencanto com a democracia. Mas enquanto os eleitores exercerem seu direito de escolher o governante e acreditarem que, em algum momento, seu voto pode fazer diferença e mudar o poder em seus países, a democracia persistirá. O movimento da história tem sido pela democracia. Mesmo quando ela submerge, por desencanto e erro, como ocorreu com a República de Weimar, ela ressurge vitoriosa. Foram os pensadores de Weimar, entre eles, com destaque, o filósofo Karl Jaspers, que construíram a democracia alemã, após o nefasto regime de ultradireita nazista liderado por Hitler, que levou o mundo à guerra e protagonizou o holocausto.

Publicado originalmente no Blog do Matheus Leitão/G1