Nos quatro dias da Convenção Nacional do partido Democrata, ouviu-se repetidamente no estádio United Center que a candidatura de Kamala Harris havia gerado a energia e a animação que faltavam. A imprensa também destacou essa energia. Era a consagração de uma candidatura inesperada, como ela mesma definiu em seu discurso ao aceitar a indicação para disputar a Presidência pelo partido. Afinal, dois meses antes do abandono de Biden, ninguém diria que seria Kamala a candidata.
Tudo começou com o fiasco do presidente no primeiro debate. Ao vencer com facilidade as primárias democratas, Biden reacendeu a esperança de que repetiria 2020, e seria o unificador capaz de formar uma coalizão pela democracia e contra Trump. Com o nocaute no primeiro round, o desalento dominou lideranças, eleitores democratas, independentes e republicanos que não querem o retorno de Trump. O desânimo provocou algo como uma depressão cívica. Biden perderia a eleição e o indesejado voltaria à Casa Branca.
Ao abrir Biden mão da recandidatura e indicar Kamala Harris como sua substituta, criou uma situação imprevista. A depressão se tornou euforia. Rapidamente o partido transferiu para ela os delegados conquistados por ele nas primárias que havia vencido facilmente. Mas a perplexidade era muita. Como recuperar o tempo perdido? As primárias, que permitiam aos candidatos se tornarem conhecidos e populares já haviam passado. O presidente demorou muito a se convencer de que não podia ser o candidato. Desde Lyndon Johnson essa desistência não acontecia.
A solução foi transformar a Convenção em um momento marcante e histórico da campanha, para projetar o nome de Kamala Harris como “ficha limpa”, “classe média”, durona com os molestadores de mulheres, bandidos e especuladores, empática e compassiva com a gente comum e especialmente com os excluídos, os discriminados e fazedora, cumpridora. O script dos discursos de apresentação dos vários lados bons da candidata estava dado. Os demais deviam ser motivadores, para mobilizar a população a sair para votar e escolher Kamala. As democracias em que o voto é voluntário têm, na minha opinião, a vantagem de impor duas condições ao candidato presidencial para ser competitivo. Primeiro convencer o eleitorado a votar, a exercer sua cidadania. Convencê-los de que seu voto pode fazer a diferença e por ele devem vencer a apatia. Segundo, convencer os eleitores de que merece seu voto.
Chicago teve outras duas convenções democratas que também ficaram famosas. A de 1968 entrou tristemente para a história pelas manifestações contra a guerra no Vietnam e pela violência da repressão policial. O contexto estava dado para a Convenção de Chicago se tornasse histórica pelas razões erradas. O prefeito da cidade era Richard J. Daley, sua ordem para a polícia era reprimir as manifestações e “atirar para matar”. O clima já era de indignação com a guerra, com os assassinatos de Martin Luther King, em 4 de abril, e Robert Kennedy, um dos postulantes à indicação para disputar a presidência, em 5 de julho. King indiscutivelmente o mais notável militante contra o racismo. Bob Kennedy, irmão do presidente assassinado e grande esperança dos democratas.
No dia 31 de março, o então presidente Lyndon Johnson, favorito para as primárias que estavam para começar, como candidato à reeleição, declinou da candidatura. Ele indicou o seu vice, Hubert Humphrey como candidato Democrata. As primárias estavam para começar e Humphrey não teve tempo de concorrer nas primárias, na qual se enfrentaram Eugene McCarthy e Bob Kennedy. A disputa entre os dois foi acirrada, até as primárias da California que Kennedy venceu com largueza. Foi assassinado ao descer do palanque em Los Angeles, depois do discurso celebrando sua vitória. Humphrey enfrentou McCarthy na convenção e ganhou. O livro Miami e o cerco de Chicago, de Norman Mailer sobre os eventos em torno da convenção democrata é uma extraordinária peça literária de jornalismo na primeira pessoa.
Salto na história e estamos em 1996, outra convenção do partido Democrata em Chicago. O estádio United Center estava novinho em folha. O prefeito era Richard M. Dailey, filho do sanguinário Richard J. Dailey, de 1968. Para ele, era a imperdível oportunidade de redimir Chicago e o seu nome. Fez questão que fosse uma convenção perfeita e histórica. Perfeita, foi. Histórica, nem tanto, Bill Clinton foi indicado para buscar a reeleição pelo partido. A convenção entrou para a história pela remissão da violência repressora e pela celebração da “nova” Chicago.
Outro salto. A histórica convenção democrata de Denver, Colorado, em 2008, consagrou o jovem senador negro, Barack Obama. Um candidato de carreira política meteórica, surpreendeu e saiu como o inesperado vitorioso das primárias. A sua confirmação na Convenção Nacional do Partido Democrata foi apoteótica. O que se ouvia por lá e corria a imprensa, era que ele trouxera uma nova energia, um senso de que “sim, nós podemos” realizar o sonho americano. Obama mobilizou o voto negro e latino, energizou a classe média progressista e enfureceu a direita, e se tornou o primeiro negro a governar os Estados Unidos.
Chegamos, finalmente, à convenção de 2024. Ela tem em comum com a de 1968, a cidade, Chicago, um contexto de manifestações contra a guerra, porém outra guerra e agora ruas mais mais pacíficas e uma candidata inesperada, surgida do abandono da disputa pela reeleição pelo presidente no poder. Com a convenção de 1996, além de Chicago, compartilhou o United Center. Com a de Denver, 2008, sua significação histórica. Mais que outra candidatura inesperada, tem singularidades como a de Obama. A primeira mulher negra, a primeira sul-asiática, logo a primeira não-caucasiana, mestiça de mãe imigrante indiana e e pai imigrante jamaicano e negro a ser indicada para se candidatar à presidência dos Estados Unidos. Ela já havia sido a primeira ocupar a vice-presidência. O inesperado estava no fato de que ser a escolhida do partido, sem concorrer nas primárias, vencidas por Biden. Era mais provável que fosse escolhida para sucedê-lo em 2028.
Kamala se superou no discurso de aceitação da candidatura. Foi o mais vibrante, afirmativo e mobilizador de todos que já fez. Ela sabia que seu desempenho teria que ser exemplar para afastar qualquer temor de que não seria capaz de bater Donald Trump. A expectativa era enorme. Hillary Clinton, ao falar como primeira mulher a ser indicada para disputar a presidência por um dos dois partidos dominantes, recebeu ovação bem maior do que recebera na convenção que a indicou. Era um sinal de valorização política da mulher, ou da mulher política. Michele Obama, falou antes do marido, e levantou o estádio e todos os outros auditórios pelos estados com telões conectados à convenção. Se quisesse a presidência, o partido a indicaria. Coube a ela e ao ex-presidente Obama serem motivacionais e acauteladores. Michelle, além do elogio às capacidade de Kamala, alertou sobre a necessidade de todos trabalharem duro para convencer pessoas a votar e a votar em Kamala. “Sim, ela pode”, disse Obama, acompanhando o grito de uma miltante na plateia, mas vai ser uma luta renhida, de resultado apertado, será preciso buscar voto a voto.
Os oradores se saíram muito bem em construir um clima de antecipação, de expectativas positivas para ouvir Kamala Harris aceitar a candidatura “em nome do povo”. Ela já havia disseminado alguns memes poderosos: “nós não vamos andar para trás” e “nós lutamos e nós vencemos”. Mas precisava de uma nova e poderosa frase para diferenciá-la de Trump: “das cortes à Casa Branca, eu só tive um cliente, o povo”. Referia-se à sua trajetória de promotora, a procuradora-geral e a vice-presidente. Mais adiante diria que Trump só teve como cliente a ele mesmo.
Kamala saiu vitoriosa do United Center, conseguiu unir muita gente país afora. Na média das últimas pesquisas, já está à frente de Trump. Biden sempre esteve atrás. Nas últimas 15, ela está na frente em 11. Na estimativa de delegados, porém, ela ainda tem que avançar. Hoje, ela venceria em oito colégios eleitorais, assegurando 208, dos 270 delegados necessários para se eleger. Mas Trump, venceria em dez, obtendo 219 delegados. O campo decisivo de batalha será nos 10 estados sem preferência clara, onde estão rigorosamente empatados e há 111 delegados em disputa. Como disseram Michelle e Barack Obama, será uma luta dura e voto a voto, que exigirá muita mobilização da militância do partido, muita persuasão para virar indecisos em eleitores e muita convicção dos dois grandes eleitorados aos quais a própria Kamala pertence, dos não-caucasianos e das mulheres.