A Venezuela está presa em um labirinto sem heróis. Cada lado é culpado das acusações que lhe fazem o outro lado. É uma história sem um lado bom, com um grande e sofrido perdedor, que é o povo venezuelano. Ele acreditou no sonho com Chávez e perdeu. Nos estertores do governo, já enfrentava muita privação. Com o sucessor, mergulhou na fome e na desesperança. Maduro é um ditador improvisado de um quadro treinado para ser teleguiado. Era para ser manipulado e virou dono do poder. Não há dúvida de que a cúpula da Venezuela hoje está mergulhada na corrupção e de mãos dadas com o banditismo. Mas os venezuelanos não podem esperar muito, também do outro lado. Juan Guaidó, aliou-se com lideranças cuja agenda nada tem a ver com o drama venezuelano. Atende mais aos impulsos de Donald Trump, que tem se provado mais irresponsável do que se imaginava possível no establishment americano. Não se pode acreditar, nem por ingenuidade, que ele tenha alguma inclinação altruísta. EUA, Brasil e Colômbia estão usando a ajuda humanitária como arma política contra Maduro, não por ser um governo tirânico, mas por não estar alinhado ideologicamente com eles. Maduro queima alimentos e medicamentos necessários à população, como se fossem tóxicos e não agudamente necessários. Mas não foram enviados por solidariedade e sim como aríete para arrombar as portas do regime. É um confronto sem inocentes com milhões de vítimas.
O quadro é de um impasse de alto risco e muito dano. Maduro escala no front diplomático, rompe relações com a Colômbia, fecha as fronteiras, mas até agora não buscou o confronto violento. Nos discursos à militância faz ataques violentos e dispara bravatas. A violência dos últimos dias é resultado da situação arriscada a que o impasse chegou. Excessos, com mortes, são quase inevitáveis nessas circunstâncias.
A Venezuela tem as forças armadas mais bem equipadas da América do Sul. Chávez comprou a lealdade dos militares armando-os até os dentes com armamento comprado na Rússia. Ao mesmo tempo, começou a armar militantes, organizados em milícias e outras modalidades de distribuição do poder e de uso da força física. Maduro apóia-se tanto mais nessas forças paramilitares, quanto maior é a ameaça de deserção nas forças armadas. Por enquanto, estas se limitaram à média e baixa oficialidade e a oficiais de alta patente na reserva. Não se pode descuidar, todavia, do fato de que Chávez, eleito, consolidou seu poder, assumindo o controle das forças armadas, com base na média oficialidade. Coroou os coronéis, como ele, para as patentes mais altas e forçou a transferência em massa para a reserva de oficiais generais que se mostravam recalcitrantes em apoia-lo. O comando militar, hoje, está inapelavelmente atrelado à rede de corrupção. Mas, os que não estão nela incluídos ou que ainda podem se afastar, constituem ameaça real à permanência de Maduro no poder. É um ditador que só resiste, e como tem resistido, apoiado no poder militar.
Não há boas intenções na política dos países que se opõem a Maduro. Trump, desde o início de seu governo, vinha procurando uma forma de intervir na Venezuela. O alinhamento do governo colombiano não era suficiente. Agora, está mais perto do que desejava, com a adesão da facção mais aventureira do governo Bolsonaro. Todos os sinais são de que os generais que cercam o presidente têm impedido esse grupo, até agora, de entrar numa aventura na fronteira sem bom desfecho possível. Mas não conseguem impedir os erros e desacertos da facção rápida no gatilho. O Itamaraty está entregue a aprendizes de embaixador. Eles atropelam toda a inteligência e os procedimentos que fizeram de nossa diplomacia profissional uma das mais respeitadas do mundo. É esse arroubo da inexperiência que permite ao chanceler Ernesto Araújo formular declarações com duas cláusulas, uma contrariando a outra. Não consegue sequer disfarçar, no manejo das palavras, a natureza puramente política da carga enviada à Venezuela como ajuda humanitária. Não é ajuda, nem é humanitária. Não passa de um cavalo de Tróia mal-ajambrado. A declaração do chanceler revela que a ação humanitária é de inspiração política. Disse que era importante que as autoridades venezuelanas deixassem passar a ajuda, por seu sentido humanitário, e pelo significado simbólico político de apoio ao governo Guaidó, o único legítimo.
A oposição no Brasil, ao apoiar Maduro para se opor a Bolsonaro e a Trump, sacrifica a legitimidade da crítica à falsidade do humanitarismo desses governos. A oposição interna a Maduro fracassa em oferecer ao povo de seu país a esperança de uma saída democrática e progressista, ao aceitar fazer o jogo de Trump e sua coalizão. A solidão do povo venezuelano é perturbadora e inquietante. Há uma sombra a avançar pelo continente, sob a qual esquerda e direita perseguem seus fantasmas ideológicos e deixam o povo só e vulnerável.
A Venezuela tem diante de si, hoje, mais cenários ruins, do que cenário bom. A única saída boa, eleições livres, com fiscalização internacional, parece cada vez mais distante. Fiscalização na qual não deveriam participar os governos sul-americanos da coalizão de Trump, entre eles o Brasil, e nem, claro, o governo de Washington. Só os militares venezuelanos podem forçar Maduro a aceitar uma solução eleitoral para o impasse. Todos os outros cenários são trágicos, do golpe à guerra civil. Esse impasse de perigo e dano continuado ao bem estar coletivo é, ele mesmo, um cenário trágico. O povo venezuelano está há anos sofrendo com hiperinflação, desabastecimento e desalento. A maior ameaça que enfrenta hoje é da violência desatinada das milícias do regime, bem armadas, sem treino e sem disciplina.