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Um presidente micromotivado

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O episódio mais recente de crise provocada por declarações ou atitudes presidenciais é um bom exemplo da inadequação de Jair Bolsonaro às exigências institucionais do cargo para que foi eleito. Há limites institucionais, constitucionais e legais ao exercício da presidência. O presidente tem avançado todos os sinais padrão para a conduta presidencial.

Jair Bolsonaro costuma, além disso, reduzir grandes temas a minudências e a transformar minúcias em questões prioritárias de agenda. Essa tendência reiterada aponta para crises sequenciais que, além de reduzir a autoridade e credibilidade do presidente, poderão levar o sistema político a seus limites institucionais.

Os exemplos se multiplicam. Nomeação rotineira para a suplência em um conselho que vem sofrendo sistemático esvaziamento torna-se objeto da preocupação e do veto presidencial. Provoca crise política do nada, com negativas repercussões internacionais. O vídeo pseudocarnavalesco não era uma postagem admissível em se tratando de um presidente da República. Sem falar na estranheza que causa a visão seletiva de Bolsonaro. A administração de suas redes sociais é irresponsável e desqualificada. Se ela for inteiramente pessoal, está em desacordo com as regras de decoro presidencial. Melhor seria entregá-la a um profissional de comunicação e limitá-la a postagens institucionais. A frase sobre a democracia como dádiva militar soou gratuita em um discurso no 211o aniversário do Corpo de Fuzileiros Navais. Mas, sobretudo, não tem abrigo em um sistema democrático. Um evento que deveria ser limitado no tempo e no espaço, de interesse exclusivo da corporação homenageada, se transformou em plataforma para manifestações descuidadas, que provocaram turbulência política com repercussoes internacionais negativas em relação à saúde da democracia brasileira.

A pretexto de defender a reforma da Previdência, o presidente faz live no Facebook, cercado por dois generais, o Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno Ribeiro, e o porta-voz da Presidência, general Otávio Rêgo Barros. Sem entrar nos detalhes do conteúdo, a imagem em si já é de se estranhar. A presença do Ministro-Chefe do GSI não tinha explicação, porque a agenda do pronunciamento não envolvia temas sob sua alçada. Dá a má impressão de que se trata de busca de aval militar. A presença do porta-voz, sem função naquele contexto, também parecia se dar mais pela qualidade de oficial general do que de porta-voz. Presidente eleito pelo voto popular prescinde de qualquer respaldo militar. O Facebook está longe de ser o local indicado para pronunciamentos presidenciais. Há elementos de campanha que, transplantados para o governo, geram rejeição sistêmica.

A análise do conteúdo agrava o despropósito. Primeiro, a defesa da reforma foi breve e tíbia. Além de ocupar o menor tempo de gravação, mostrava que o presidente estava disposto a esvaziar parte da reforma para atender a pressões que sequer foram ainda cristalizadas. O presidente dedicou a maior parte da gravação a questões muito secundárias, delegáveis a funcionários de terceiro escalão, como as lombadas eletrônicas nas estradas ou as ilustrações padrão de uma cartilha de saúde pública rotineira, voltada para a saúde da mulher. Mais uma vez micropreocupações pessoais se transformam em macropontos da agenda presidencial.

O presidente já desperdiçou o primeiro terço de seu melhor período para implementar uma agenda presidencial. Está em processo acelerado de depreciação do patrimônio eleitoral conquistado. Sem capacidade de apresentar propostas tecnicamente sólidas para os principais problemas do país, ele e a maioria de seus ministros desperdiçam energia em não-problemas e assuntos secundários. O sistema perde energia para aplicar nos desafios centrais.

A área de educação é o maior exemplo. Está sob comando de um ministro sem qualificação para tratar dos grandes impasses da educação brasileira. Ele prefere agir como agente de repressão e doutrinação, como se estivesse em um regime totalitário.

Os ministros que apresentaram propostas tecnicamente consistentes, como Paulo Guedes e Sérgio Moro, mesmo que controvertidas, não recebem o respaldo do presidente e são por ele desautorizados com desgastante frequência.

Se o governo tem uma agenda de políticas com temas dignos de obterem a prioridade presidencial, ela ainda não se tornou pública. As lacunas são gritantes em áreas críticas como educação, saúde e segurança pública. Mesmo na área econômica, tecnicamente bem aparelhada, só está visível a reforma da Previdência. Mas, ela sozinha não teria o condão de reordenar o gasto público e promover a retomada sustentada do crescimento voltado para promoção de nossa economia ao novo padrão técnico global. Na área de segurança, o pacote legislativo apresentado por Moro pode aperfeiçoar a repressão penal, mas não constitui uma política de segurança pública. Além disso, a facilitação da posse privada de armas, que contou com a anuência explícita e a participação direta do ministro, estabelece contradição entre a medida e os princípios validados pelas evidências sobre boas políticas de segurança pública, que cabe a ele sanar.

Tem-se um presidente minoritário, que se recusou a negociar em bases legítimas uma coalizão de governo, cujas atitudes enfraquecem seguidamente sua autoridade e credibilidade. As tentativas de correção dos deslizes presidenciais têm ficado sempre aquém do necessário, permitindo a acumulação de danos reputacionais, políticos e de legitimidade. No Congresso, a negociação por baixo dos panos de emendas e cargos de escalões inferiores é um péssimo substituto de uma negociação transparente para formar uma coalizão política multipartidária.

Qualquer manual dirá que tudo o que está acima configura uma situação de alto risco político. A parte não sectária, nada desprezível de eleitores de Bolsonaro, mostra-se crescentemente frustrada com seu governo e com ele pessoalmente. Não será surpresa se as pesquisas metodologicamente confiáveis mostrarem perda significativa de popularidade do presidente. Os sectários começam a perder argumentos. Fica o resíduo incômodo, mas vazio de significado, dos ataques de ódio e das tentativas de desqualificação dos críticos e opositores, que perdem efeito fora de um conjunto narrativo com algum conteúdo fidedigno.

A maioria eleitoral elege, mas não significa uma carta branca para usar a Presidência da República como o eleito quiser. Há limites institucionais e legais que o presidente tem dado demonstrações de desconhecer ou desprezar. Por isso há risco de instabilidade política. E, dependendo do grau de instabilidade política, pode haver risco de abalos institucionais e à própria democracia.