Subimos o rio Paraguai durante cinco dias, saindo de Corumbá e fomos até a RPPN Acurizal, na borda do Parque Nacional do Pantanal, quase na fronteira com a Bolívia. Passei as horas calmas e mais frescas no deck do navio, ouvindo o som vivo do Pantanal e fotografando. É espantosa a quantidade de aves que se avista nas margens, os mamíferos variados, a onça a beber água, as capivaras, os veados campeiros, os graxains-do-mato, comumente conhecidos como cães-vinagre. Não devem ser confundidos com o cachorro-do-mato. Eles pertencem à mesma família, Canidae, mas são espécies diferentes, com características e comportamentos próprios. Passamos por duas matilhas desses animais que olhavam curiosos o grande barco passar. A onça, que eu mais queria avistar estava na margem mais afastada. Muito longe. O rio Paraguai mostrava toda a largura que alcança na estação de cheia. A vegetação exuberante não tinha ainda as cicatrizes das devastadoras queimadas.
No voo de Campo Grande a Corumbá, porém, vimos o horizonte enfumaçado por todo o percurso. Havia fogo na vegetação, embora não fosse época da seca, quando as queimadas a cada ano são mais devastadoras. A extensa nuvem de fumaça parecia estar no Alto Pantanal, um local de mais difícil acesso e ainda imune ao avanço destruidor das monoculturas e do gado. Ao chegarmos na RPPN Acurizal, que é parte da Serra do Amolar, vimos que se tratava de uma queimada enorme no alto da serra. Talvez fosse fogo espontâneo, fato raríssimo provocado por um raio em uma área de vegetação mais ressecada. Fora este foco, cujas labaredas eram visíveis no topo, bem distante de nós, o Pantanal, em plena cheia, estava íntegro. Fico a me perguntar quanto da humana sensibilidade para o belo é preciso perder para incendiar a frágil beleza do ecossistema pantaneiro. O pantanal sem suas águas é cerrado quase catinga, quase deserto. Os rios não lhe pertencem. Vêm do planalto e o alagam na estação das águas. Na seca, as espécies que o habitam ficam expostas tanto a caçadores, quanto às labaredas. Confinam-se nos raros alagados e nas áreas de vegetação mais densa, praticamente sem ter o que comer.
Ao chegarmos à RPPN, Adalberto Eberhard, fundador da Ecotrópica, ONG responsável pelas reservas Acurizal, Penha e Dorochê, propôs uma saída de voadeira para conhecermos uma lagoa próxima. Estas três reservas integram o Corredor Ecológico do Pantanal, do qual é parte também o Parque Nacional do Pantanal Matogrossense e atravessa os dois estados do Mato Grosso. É uma das poucas áreas com maior chance de sobrevivência da biodiversidade e dos ecossistemas pantaneiros. Antes, fizemos um passeio pela reserva, que, entre outras riquezas, contém um pedaço da Floresta Quitana, parte da Amazônia boliviana.
Finalmente saímos na voadeira rumo à lagoa. Descemos o Rio Paraguai na direção de Corumbá durante uns dez minutos e viramos à direita no braço do rio que forma a lagoa. Pelo que sei, ela não tem nome. Devia ter. O rio se infiltra e alaga uma grande área. Abre-se um enorme espelho d’água cercado por tepuis. A lagoa pantaneira era de beleza singular, emparedada por um tepui que declina rumo à vegetação de transição entre Cerrado e Amazônia. Tepuis são lindas formações rochosas ancestrais formadas há quase 2 bilhões de anos por camadas sedimentares. Sua morfologia é única, com altos platôs planos e paredões verticais. O mais conhecido tepui é o Monte Roraima, rodeado por uma área de transição entre ecossistemas amazônicos de campos rupestres e savanas. Imaginem esta planície alagada na qual a grande lagoa é barrada por uma rocha de 850 metros de altura com seus topos lisos e negras paredes lineares formando faces de pedra, contornada pela mata repleta de aves e mamíferos.
Subimos por algo como 500 metros sem necessidade de equipamento ou treino de montanhismo. Era uma subida íngreme por degraus formados naturalmente pelas irregularidades do paredão. Do ponto onde paramos, tinha-se uma vista aérea do pantanal, um plano extenso de águas recortadas por vegetações em caprichoso desenho. Do alto, o que se vê parece um labirinto acolhedor, abrindo-se em tantas variações que não se deseja dele sair.
Eu já estava conformado em ter avistado uma onça ao longe, bebendo a água do rio Paraguai, entre os tantos extremos de beleza que nos cercavam. Foi quando Adalberto avisou “onça!”. Pensei ter ouvido mal e perguntei o que era, ele repetiu apontando para a margem direita do braço de rio, “onça”! E a vi, majestosa, atravessando a nado de uma margem a outra do canal. O barqueiro desligou o motor da voadeira e deslizamos a seu lado, a dois metros de cautelosa distância. A onça mostrava justificado incômodo com nossa invasiva presença em seu território. Ao chegar à terra firme ela nos desafinaria. Fiz uma foto do lindo animal na água e preparei a teleobjetiva para capturá-lo quando nos desafiasse.
A onça chegou à outra margem e a pudemos ver inteira a não mais de três metros de distância. Um animal adulto, na plenitude de sua vida livre e segura naquele território protegido. Enorme, imponente, belo, selvagem. Era dono absoluto naquele paraíso de biodiversidade, seu maior mamífero e mais apto caçador. Ela saiu da água, caminhou para uma pequena elevação já na entrada da vegetação fechada que se dispunha toda para ela em sua retaguarda. Olhou para nós e esturrou. Sumiu confundida com a malha de verde e sombra. Fiquei tão emocionado com aquela interação direta, aquele nexo que se formava entre eu e a onça, o entendimento recíproco de que ela estava certa e eu era o invasor, que não acertei o fotômetro para a mudança da água para a margem pedregosa com vegetação cerrada por trás. A mão tremeu e a foto não saiu legal.
Fiquei frustrado por alguns instantes. Queria a foto-troféu, como um caçador no passado levava a cabeça dos animais que matava para expô-lo na parede. Já vi uma dessas salas macabras com cadáveres mutilados dos mais diversos e belos animais. Insuportável ver aquelas cabeças como que saídas da parede. Causa náusea e indignação. O safari fotográfico é mais humano. Após a tocaia bem sucedida, um disparo do obturador da câmera em lugar do espoco do rifle. Foto no lugar de um corpo ensanguentado. Muitos adeptos relatam as mesmas emoções do caçador. Colecionam fotos como troféus conquistados aos que habitam as matas.
Sou apaixonado pelos grandes mamíferos, nunca tive prazer em vê-los no cativeiro, menos ainda mortos. Sou libertário e, para mim, todas as espécies têm o direito à vida livre em seus próprios ecossistemas. O prazer, o espanto, o respeito, a epifania me vêm nos encontros nos quais, vulnerável, seu olhar deixa claro que sou o invasor. Piso nesse território alheio com cuidado e temor reverencial. Tenho meu momento com a onça gravado para sempre em minha memória afetiva. Bem ao lado do enorme rinoceronte macho, também inesperado, que encontrei no parque Hluhluwe Imfolozi em Zulu-Natal, África do Sul. Mas esta é outra história.