A democracia vive da incerteza. Por isso só é possível trabalhar com probabilidades e margens de erro. O eleitor só fala de verdade na cabine de votação. O resto é estimativa. Os institutos não erraram as estimativas para Lula. Os últimos números ficaram na margem de erro. Em outras palavras, dentro do intervalo estabelecido como provável. Um desvio reconhecido como uma probabilidade concreta. Não foi assim com Bolsonaro. As estimativas ficaram fora da margem de erro. O que ficou fora da visão das pesquisas foi o crescimento de Bolsonaro e sua votação final. Provavelmente houve movimentos de última hora que as pesquisas não alcançaram. Pode ter havido recusa de revelar o voto por parte de bolsonaristas por causa dos ataques de Bolsonaro aos institutos.
Não se deve exagerar a surpresa e deixar de reconhecer que Lula venceu o primeiro turno com 48,4% dos votos. Embora com margem menor do que a esperada, de apenas 5 pontos à frente de Bolsonaro. Por ser o mais votado continua a ter o favoritismo. Há casos de virada em eleições similares para governador e prefeito. Mas há limites para usá-los como referência porque as características dos colégios eleitorais e a própria natureza da escolha é muito diferente. O percentual de Lula foi significativo e ficou a apenas 1,6 ponto dos 50%, que era a média das estimativas dos institutos em seus últimos levantamentos finais. Houve erros importantes nos estados e será preciso pesquisa para identificar as razões deles. A abstenção ficou na média histórica e os votos brancos/nulos ficaram abaixo da média histórica. Atualizei meu post sobre abstenção para incluir este novo resultado.
As hipóteses centrais sobre a eleição se confirmaram. Foi totalmente dominada pelos dois candidatos-presidentes, como postulei, desde o inócio. Bolsonaro certamente esvaziou o eleitorado antipetista de Ciro Gomes e Simone Tebet. Outra hipótese que se confirmou, corolário da primeira, foi que a definição de vitória em primeiro turno ou não se daria na margem, por dois ou três pontos percentuais no máximo. Ela se deu na margem por 1,6 pontos. A centralidade da votação no Sudeste como chave para a vitória, outra hipótese, ficou evidente. São Paulo e Minas Gerais serão os campos de batalha onde Lula e Bolsonaro definirão quem vencerá a eleição.
Os dois candidatos enfrentarão o mesmo problema. O voto polarizado de natureza emocional, baseado no forte ressentimento em relação a situações, valores e ideias que cada um está dado. Muito provavelmente esgotou-se. É o que a psicologia social e os politólogos chamam de polarização afetiva. Prefiro definí-la como polarização por repulsa recíproca. Foi uma decisão fortemente baseada no antipetismo e no antibolsonarismo. O primeiro formou a maior parte do voto de Bolsonaro. O segundo, a maior parte do voto de Lula. Sobraram a conquistar os eleitores moderados, mais racionais, que encaram a eleição de forma substantiva e não adjetiva. Estes rejeitarão radicalismos e agressividade e valorização entendimentos, propostas razoáveis que pareçam factíveis para resolver os problemas que os afligem. A maioria provavelmente é liberal, mas com solidariedade social. Um eleitor que encontrou em Fernando Henrique Cardoso e Geraldo Alckmin os candidatos mais próximos dele. Portanto, é bem provável que a eleição se decida pelo centro, em São Paulo e Minas Gerais.
Lula tem dado sinais de ter compreendido isto. Ele tem acenado com aliança com o MDB, incluindo Simone Tebet como interlocutora; com o PDT, com sinais de que Ciro Gomes seria bem-vindo ao diálogo. Bolsonaro também parece ter sido convencido, pelo menos temporariamente, da necessidade de ampliar seu limitado leque de alianças. Mas, até agora só mencionou a possibilidade de conversa com Romeu Zema que, por suas declarações inciais, continua com o discurso antipetista, que mantém os votos obtidos, mas parece ter pouca força para conquistar novos votos nos setores mais moderados e pragmáticos do eleitorado.
Outra hipótese, esta dos politólogos, que se confirmou, foi a do impacto das novas regras no sistema partidário. O principal efeito estimado seria a redução da fragmentação. E, como se pode ver no gráfico, a fragmentação caiu significativamente, da faixa da inelegibilidade, com 17,4 no índice de partidos efetivos na Câmara e de 13,9 no Senado, para 9,3 e 9,0 respectivamente. Índices que estão na faixa da governabilidade. A nova composição do Congresso daria condições de governabilidade tanto para Lula, quanto para Bolsonaro.
Os dois quadros abaixo mostram isto. O primeiro, com as principais bancadas, com cadeiras na casa dos dois dígitos na Câmara Federal, mostra uma concentração das bancadas em partidos com entre 40 e 60 deputados. Bancadas médias para o padrão brasileiro. Os partidos dos dois candidatos a presidente, como de praxe, ficaram com as maiores bancadas, mas longe da maioria. Portanto, ambos teriam que formar coalizões de governo.
O segundo quadro mostra uma tentativa de distribiur as bancadas por suposta orientação ideológica. Há várias razões para muita cautela para usar esse tipo de classificação e sem exageros. A principal delas é que os partidos brasileiros não estão enraizados na sociedade, com exceção do PT, PSOL, PCdoB e, com recorte distinto, Rede. São partidos de grupos políticos, oligarquias, associados a grupos de interesses específicos. Parece estar a se formar um segmento de direita com algum enraizamento, mas ainda é cedo para dizer. Portanto, não dá para falar de ideologia, no sentido forte, em partidos sem base social. De qualquer forma é apenas um exercício para mostrar que existe possibiidade de desenhar coalizão eficaz para um governo Lula e também de coalizão eficaz para um governo Bolsonaro. Há possibilidade de formação de uma coalizão que reúna a esquerda/centro-esquerda e o centro, como há o desenho possível de uma coalizão de direita/centro-direita/centro. Ambas de tamanho similar e com uma maioria confortável.