Brasília fervia. 1968. O Brasil fervilhava. As ruas das grandes cidades e de sua novíssima capital se agitavam tomadas pelo movimento estudantil. As universidades latejavam com a mistura de indignação e esperança só possível em jovens sonhadores. O mundo vibrava com a chienlit que agitava Paris.
A Universidade de Brasília ainda estava em construção. Marcávamos as reuniões de estudantes nas obras do “Minhocão”, o belo e comprido prédio inacabado do Instituto de Ciências. Para chegar até ele, no meio do Cerrado, íamos por uma trilha usada pelos trabalhadores e caminhões. O prédio tinha apenas as colunas de concreto armado e as lajes. As reuniões eram no segundo piso. Sua aparência era ambivalente, ruína ou promessa? Foi apelidado de Grécia. O campus era invadido semana sim, a outra também. Do alto da Grécia podíamos ver a polícia chegando e sumíamos Cerrado adentro.
Naquele dia a reitoria havia autorizado a assembleia no Dois Candangos, o auditório da UnB. Não foi por tibieza do reitor, mas pela enorme capacidade de sedução de Honestino Guimarães, nossa principal liderança, um herói da resistência, desaparecido e assassinado pela repressão.
O auditório lotou. Discutíamos a realização de uma grande passeata pela W3. Não foi a primeira. A nossa maior passeata havia sido no início do ano. Foi quando encontrei pela primeira vez meu amigo Márcio Moreira Alves. Marcito era deputado pelo PMDB e marchou na nossa frente, de braços dados com Mário Covas, Davi Lerer e outros deputados da esquerda hospedados no partido de oposição consentida. Nem tão consentida assim, porque foram todos cassados e Marcito exilado. Essa nobre comissão de frente buscava nos proteger da polícia. Não adiantou muito. Os deputados ficaram encharcados com os jatos d’água atirados pelo Brucutu, o tanque concebido para dispersar movimentos de rua, com canhão de água e lançadores de bombas de gás lacrimogêneo.
A polícia entrou com toda a violência. Mas, era antes do AI-5. Não usaram balas contra os estudantes. As armas da dissuasão eram a água, as bombas de gás e os longos cassetetes. Quando ficou insustentável, corremos para os vazios que a avenida ainda mostrava e davam acesso ao Cerrado. O Cerrado é bom. Ele foi nosso lazer e nosso abrigo. Manancial abundante. Riqueza de flores. Tantas que, entre os jornalistas da época, as notícias frias do longo descanso parlamentar, viraram as flores do recesso. As grandes queimadas ocorriam, mas nada parecido com agora. Lembro um trabalho de biologia, andando pelo Cerrado depois do fogo para registrar as plantas que resistiram. A que mais se destacava era a canela de ema, a esguia Velloziaceae, com suas lindas flores cor de violeta contrastando com aquele desolador terreno de cinzas.
Pensavam que nos intimidavam com a truculência policial mas, ao contrário, nos convenciam de que precisávamos dobrar a aposta. Estávamos incomodando. Imaginávamos que teríamos o apoio e a solidariedade das famílias que iam ver a passeata da porta de suas casas e se recolhiam tão logo a polícia chegava. Éramos assim, amávamos os Beatles e os Rolling Stones e acreditávamos na vitória da nossa revolução.
O que discutíamos nos Dois Candangos era se faríamos a passeata, uma greve geral para fecharmos o campus. Os estudantes estavam divididos. Um grupo achava que a greve nos desmobilizaria e seria prejudicial, podendo levar a reprovações em massa e expulsões. As repetidas invasões do campus, algumas seguidas de ocupação policial por dias, já haviam subtraído muitas horas de aulas de nosso calendário e não haveria como repor. Os mais exaltados queriam passeata e greve. Eram acusados de serem “estudantes profissionais”, no campus para fazer política e não se importavam com o desempenho nos cursos.
Um deles vinha transferido de Goiânia e já estava com um pé na clandestinidade. Começou inflamado discurso em defesa da greve combinada à passeata como parte da demonstração de impopularidade da ditadura e desestabilização social. Iniciou com uma vibrante acusação contra o capitalismo e o imperialismo aos quais a ditadura servia. Qualquer contestação do público, ele ficava mais agitado, os braços voavam de um lado para outro, punhos cerrados, olhos injetados de fúria revolucionária, rosto crispado. Já não precisava de microfone, estava aos berros.
Numa de suas investidas, com palavras exigindo mais pulmão para saírem no volume desejado, sua dentadura caiu e ele, ágil, a aparou no ar com as mãos e a recolocou na boca. Era uma daquelas dentaduras inteiras, com toda a arcada superior e uma reprodução de parte do palato. A queda provocou impiedosa gargalhada geral. O reflexo que lhe permitiu capturar a dentadura no ar e repo-la na boca, uma salva de palmas.
Mas não terminou aí. Com enorme presença de espírito, emendou na última frase antes do acidente “vocês estão rindo? Isto foi causado pelo subdesenvolvimento que sonega higiene e saúde aos pobres. Não é para rir do subdesenvolvimento, é para lutar contra a condição que os lacaios do imperialismo nos impõem!”
Palmas efusivas, todos de pé, começaram a cantar a canção de Carlinhos Lyra.
Subdesenvolvido, subdesenvolvido….
Era um país subdesenvolvido
Subdesenvolvido, subdesenvolvido…..