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O novo normal é o incerto

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A ideia de que a economia global estava prestes a entrar em um novo ciclo de normalidade após os desequilíbrios iniciados em 2008 começava a ganhar trânsito. Do mesmo modo, as expectativas sobre a economia brasileira estavam ficando mais otimistas. Não era provável, todavia, que se entrasse em um período de estabilidade econômica, global ou nacionalmente. O mais provável é que surgissem imprevistos, que gerariam novos desequilíbrios. A economia não existe em separado do resto do sistema social. Ela não pode entrar em um estado sustentado de normalidade com os sistemas políticos a gerar incertezas e riscos e as sociedades passando por mudanças estruturais muito rápidas. Governantes imprudentes e reacionários imaginam que possam defender suas economias fechando fronteiras e adotando práticas protecionistas. Acreditam que acordos bilaterais podem funcionar em substituição às redes globais de comércio e aos mecanismos multilaterais. É improvável que a soma de acordos país a país seja capaz de resolver as falhas de integração decorrentes da desorganização de cadeias globais. A equação não fecha. É a receita certa de desastres econômicos.

Toda a produção relevante já é distribuída por cadeias globais de suprimentos. Um sobressalto na China, como aconteceu com o coronavirus, que leve ao fechamento temporário de unidades locais repercute imediatamente por toda a cadeia e pode levar a rupturas no fluxo de partes e mercadorias, afetando as principais linhas de produção do mundo. A Apple vê a expansão da oferta de iPhones ameaçada pela crise do coronavirus, porque eles são montados na China e têm componentes produzidos lá e em outros países. Como ela, todas as grandes empresas globais têm na China um hub de suprimento, demanda ou montagem de seus produtos.

A aprovação da Brexit pelo parlamento britânico e o início formal das negociações sobre os passos concretos para sua concretização foram comemorados como o princípio do fim das incertezas. Mas, ninguém pode prever as consequências deste incerto processo de saída. A operação levará tempo e entrará por rotas desconhecidas. O Reino Unido é parte da UE desde 1973. Não é trivial desfazer os laços de mais de 40 anos e refazê-los em outro padrão de convivência. O país ainda permanecerá na União Europeia até o fim do ano, para que encontrem esses termos de coexistência. Haverá consequências para os dois lados. Esta será a mais importante mudança no status global do Reino Unido, desde o fim do império britânico. Do lado da UE, representará o principal revés nos seus 70 anos de laboriosa construção. Ela perderá, de repente, 15% de sua economia, a maior fatia das despesas militares e a City de Londres, um dos hubs mais antigos e importantes do mercado financeiro mundial.

O surto de doença aguda respiratória do 2019-nCoV, o novo tipo de coronavirus, pegou o mundo de supresa. Não devia. Os cientistas vêm alertando há tempos que o avanço da sociedade urbana sobre o mundo natural e o contato inadequado com animais silvestres exporia o ser humano a vírus existentes na natureza, mas desconhecidos da medicina. Por esta via surgiriam novas e perigosas doenças infectocontagiosas. A conexão com a globalização tende a gerar ciclos reiterados de emergências mundiais de saúde. A mobilidade global faz com que doenças transmissíveis não fiquem confinadas aos locais de origem e se propaguem com rapidez. Daí o alerta dos cientistas sobre o risco crescente de pandemias de alcance global.

De nada adianta fechar fronteiras. A integração global já consolidada garante a movimentação de pessoas em escala suficiente para produzir pandemias. Há alertas similares sobre o efeito da mudança climática na migração de vetores de doenças para outras áreas do globo. O território deles se expande à medida que a temperatura média nesses locais se aproxima da temperatura média dos ecossistemas em que se desenvolveram.
O protecionismo, a perseguição de imigrantes e muros nas fronteiras não são respostas de políticas públicas aptas a enfrentar os desafios emergentes. São reações arcaicas, pensadas para problemas historicamente superados. Apenas agravam o quadro de desequilíbrios da transição estrutural e tecnológica em que nos encontramos.

A sedução populista dos reacionários vem da simplificação de fenômenos que lhes permite identificar inimigos fáceis e falsos, que prometem destruir. Ao ganharem apoio popular com promessas vãs, passam a corroer a ordem legal e constitucional e a enfraquecer os alicerces da democracia. Em guerra permanente contra inimigos ilusórios, mas sem a nobreza do Quixote, movem-se de teoria conspiratória em teoria conspiratória, até perderem de vez a credibilidade. Serão varridos pelos ventos da mudança que imaginaram conter com diques de papel.

Mas, o problema não é a durabilidade desses governos de mentalidade autoritária. A questão chave é a quantidade de danos irrecuperáveis e o grau de atraso no enfrentamento real dos desafios da transição causados por suas políticas equivocadas.

É possivel prever o aumento da instabilidade política, econômica e social causada pela mudança vertiginosa e pelos erros de política oriundos da negação da mudança. A recusa de adaptar a sociedade humana a novos modos sustentáveis pode ser fatal. As respostas retrógradas atrasam o processo de inovação e de adaptação à mudança, além de permitir o agravamento de processos de alto risco, como a emergência climática.

Os eventos detonadores de atrasos e retrocessos podem ser os mais diferentes e inesperados. O plebiscito a favor da Brexit gera incertezas e riscos desconhecidos. A eleição de Trump foi, com certeza, um fator de atraso nas respostas dos Estados Unidos, ainda uma das principais fontes mundiais de inovação tecnológica. A eleição de Bolsonaro pode produzir um atraso de décadas na resposta do Brasil e fazer o país perder o passo na transição do século XXI. Trump ataca a agência ambiental e o complexo da NASA, particularmente nos ramos que cuidam da ciência climática. Bolsonaro ataca o INPE, a pós-graduação e a formação de cientistas do país, já em desvantagem em relação a países emergentes como China e Índia. Temos ilhas de excelência científica, hoje fortemente ameaçadas, mas não conseguimos ainda ter a escala necessária para nos tornarmos um centro de inovação científica e tecnológica.

Vivemos uma era de imprevistos. Subestimar os riscos envolvidos na grande transição global é o perigo presente mais grave que nos ameaça. Ele é produzido pelos surtos de síndrome de pollyana no mercado financeiro e por governantes incidentais e irresponsáveis. O novo normal não é a normalidade, é a incerteza, a emergência serial de eventos atípicos e intratáveis pelos modelos convencionais de análise.

Publicado originalmente no Blog do Matheus Leitão/G1