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Autoritarismo mata

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Autoritarismo mata e não apenas pela via da truculência policial. Pode ser fatal ao esconder a verdade da população sobre situações de risco coletivo. É o que está acontecendo com a pandemia de coronavirus. O presidente chinês, Xi Jinping, que aumentou o grau de autoritarismo em seu país desde que assumiu o poder, escondeu a epidemia por mais de 30 dias. Agindo desta forma, aumentou o risco para a população chinesa e para o mundo e atrasou as medidas de precaução e tratamento. O Irã foi a fonte de infecção de casos ocorridos em pelo menos seis outros países. O governo autoritário contou 12 mortes e apenas 61 infectados. Não dá para acreditar, como apontou Drauzio Varella em sua coluna na Folha. Na Coreia, por exemplo, foram registradas 7 mortes para mil casos. Por isto o Irã está sendo tratado como a principal fonte de infecção depois da China. Imaginem se a letalidade do vírus fosse a iraniana, de 12 mortes por 61 infectados e não a coreana, de 7 por mil. Estaríamos vivendo uma pandemia global aterrorizante. A sorte é que o Covid-19, codinome científico deste coronavirus que nos infelicita, é de alto contágio, mas de baixa letalidade.

Os países que têm governos democráticos, governantes sinceros e mecanismos institucionalizados de transparência governamental conseguem controlar melhor os efeitos sociais colaterais das epidemias, tais como o pânico e a desinformação. Os cidadãos confiam nos governos e adotam comportamentos muito mais comedidos e autodisciplinados. A confiança acalma. A desconfiança atemoriza e exacerba as reações.

Nos Estados Unidos, o governo não agiu com a presteza necessária. Trump sonegou informações e uma fonte anônima do governo diz que médicos e enfermeiros que atenderam os primeiros casos não utilizaram as medidas de precaução necessárias e circularam pelo país podendo estar infectados e, portanto, espalhar o contágio. A notícia não foi confirmada. Mas, este tipo de suspeita que pode provocar medo generalizado é o resultado da falta de transparência do governo.

No Brasil, o governo até tem adotado procedimentos adequados. O ministro da Saúde revelou-se o mais normal do governo. Ele fala com a imprensa. Suas opiniões são razoáveis. Ele ouve os técnicos. Mas, é parte de um governo que dissemina informação falsa, difama e ataca a imprensa. Fora do âmbito de alcance e aceitação da desinformação e das agressões iniciadas por autoridades, entre as quais o próprio presidente, e disseminadas por bots e alguns incautos, o governo não tem muita credibilidade. O ministro pede que a população não acredite em fake news, “ele me disse”, “eu ouvi dizer” e outras formas de boatos. É irônico que o ministro do governo que se vale das fakes news peça que não acreditemos nelas, como anotou o jornalista Cláudio Angelo, do Observatório do Clima, em seu Twitter. Mas, é, também, um sinal de perigo. A principal autoridade da Saúde corre o risco de não ser ouvida, em meio ao estrondo das barbaridades, mentiras e ofensas disparadas diariamente pelo presidente e vários de seus ministros.

Epidemias são combatidas com ciência, socorro médico, verdades e confiança. Não adianta ter os dois primeiros e não ser sincero, nem ter compostura e credibilidade. Governos e pessoas autoritárias são inimigos da verdade, insinceros por natureza e inconfiáveis por decorrência. Eles aumentam o potencial de risco das pandemias globais, neste mundo irreversivelmente globalizado.

O Covid-19 muito provavelmente não desaparecerá. Continuará sua trajetória global, praticamente indetectável. Com um período de incubação já contagiosa de até 14 dias, não adianta muito fechar fronteiras, nem isolar apenas aqueles que apresentam sintomas similares aos da síndrome por ele produzida. Em algum momento futuro, ele se tornará endêmico, provocando surtos ocasionais, que poderão ser contidos com vacinas ainda inexistentes. O problema maior, é que há muitos outros organismos como este na natureza, ainda desconhecidos pela ciência. Algum entre eles pode ser mais letal do que o Covid-19. Governos de mentalidade e comportamento autoritário, de feições antigas, como no Irã, ou novas, como no Brasil e nos Estados Unidos, contribuem para aumentar o grau de perigo, por sonegarem informação, ou por não terem a credibilidade necessária para induzir os comportamento adequados na sociedade. A ideia de que regimes autoritários seriam mais eficientes para lidar com riscos coletivos não passa de um mito. Ao contrário, eles são parte do risco global de nossos dias.

 

Publicado originalmente no Blog do Matheus Leitão/G1