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A primeira vítima

  • Categoria do post:Sociedade

A filósofa social-democrata e feminista Martha Nussbaum procura mostrar em seu novo livro, A monarquia do medo, como sentimentos de insegurança e impotência podem transformar emoções, em princípio importantes para a vida humana, como a indignação ou o desejo de justiça, em sentimentos tóxicos e vingativos. Ela tem se dedicado ao estudo do papel das emoções na política.

A política, neste quadrante do século 21 em que vivemos, parece dominada por sentimentos extremados no mundo todo. Quando leio nas redes uma agressão gratuita contra amigos ou parentes por pessoas que sei terem bons sentimentos e inteligência para se comportarem de forma mais positiva e afetiva, sempre penso nessa conversão tóxica do bem em mal.
Em grande medida, essa alquimia das emoções, que trava a empatia e transforma a justa indignação em ofensa, se deve a filtros que operam de forma muito distinta em cada indivíduo. Os filtros mais comuns para transformar emoções boas em sentimentos maus são o medo, a insegurança e o ressentimento. Mas a base é a mesma, um amálgama, de medo, insegurança, ressentimento e raiva que impede o exame das causas dos problemas e conduz as pessoas à rejeição e ao ataque.

Mas, para rejeitar e atacar é preciso achar culpados. Isto está acontecendo no mundo todo e entre nós. Vivemos um período no qual o presente nos assombra e domina e o futuro é opaco. Isso embaça nossa visão dos avanços em favor das perdas.

Por que as pessoas vivem assombradas pela ameaça de colapso em várias dimensões da vida social que estão muito melhores do que há duas décadas? As informações e os eventos com carga positiva são rapidamente assimilados e incorporados a nosso cotidiano. As informações e eventos com carga negativa persistem por muito mais tempo na memória, como alertas de risco ou como ressentimento.

É uma ameaça comportamental à democracia e à convivência democrática, não bastassem as mudanças estruturais que abalam as instituições.
A estreiteza dos mecanismos de representação política, diante do alargamento acelerado da diversidade social, lança dúvidas sobre a capacidade de ampliar-se a democracia representativa e resgatar sua credibilidade. Ampliar é um verbo que sempre se imagina conjugado “ contra”, tipo “tirar do outro para mim”. Isto pode ser verdade quando se fala em processos distributivos.

Ampliar a participação na renda, mesmo que ela esteja em expansão, sempre vai requerer redistribuir, para fazê-la mais justa. Mas, com a representação não é assim. A justa representação é aquela que dá voz a todas as vozes, não a que cala algumas vozes, para que outras falem mais alto.

Com certeza acumulamos dívidas sociais imensas e, para resgatá-las, precisaremos mudar muito e rápido nossas prioridades. A mudança, porém, vai requerer mais que enfrentar os conflitos. Para ser democrática, justa e durável, precisará de cooperação, persuasão e visão de futuro. Estou pronto a admitir que há, no presente, mais carga negativa que positiva. Mas não se constrói o futuro, apenas ajustando contas com o passado, mesmo quando esse ajuste de contas seja indispensável. Isso é ainda mais claro em um mundo em mudança acelerada como o nosso.

Nas transições, vivemos sempre entre o colapso e o futuro além do possível. É complicado ajustar o passo. O agora é muito diferente do seu passado e mais diferente ainda de seu futuro. Há uma inquietante contradição entre esses dois momentos cronologicamente unidos e historicamente dissociados, a decadência e a emergência. Um anda para trás, o outro, mira adiante.

Esse “por enquanto” é um tempo de muitas dúvidas e poucas respostas. De espanto das pessoas ao não conseguirem mais estabelecer um vínculo que faça sentido entre o seu presente e o seu passado, na fronteira difusa do futuro. Há muito pouco em nossa experiência que nos permita responder aos desafios singulares com que nos deparamos a cada novo dia. Mas teremos que decidir se queremos retroceder ou avançar. Essa falta de respostas costumeiras, embaralha as expectativas progressistas, os ponteiros que nos indiquem a direção do novo.

Diante do medo avassalador, é mais fácil negar ou acusar, do que assumir riscos e pôr em dúvida nossa crença em velhas soluções. A aposta de que ainda funcionam. O caminho do conservadorismo e do reacionarismo, à esquerda e à direita, é mais fácil, porque é reativo, instintivo. Diante das alterações bruscas e recorrentes de nosso cotidiano, manter a mente aberta significa abandonar os comportamentos e respostas habituais.
Encarar novas vias que desorganizam o fluxo conhecido de nossas vidas é difícil e desafiador. Ao buscar novos padrões de respostas para nosso cotidiano encrespado, alteramos nossos pontos de vista e nos tornamos agentes conscientes da mudança.

Mas, diante da insegurança, da raiva e do ressentimento, a preferência geral é por ver nas ideias e ações do outro a razão de todas as mazelas. Não que o passado esteja livre de erros e culpas. Muito pelo contrário. Há erros de séculos e erros de conduta, gerais e recentes. Mas não se constrói o futuro vingando os erros. Precisamos de respostas novas, para evitar mais do mesmo. A vingança, usando o mesmo padrão de comportamento do “outro lado” não passa da imagem do inimigo no espelho.

Os maus sentimentos, ainda que derivados das mais nobres emoções, movem a rosca sem fim no torniquete repressivo e discriminatório. É dessa mesma mistura que nasce a confusão entre conflito e violência. Daí nascem as rejeições imediatas e cada vez mais violentas da presença dos “outros”, vistos como ameaça a ser eliminada. Nesse clima tóxico, a primeira vítima sempre será a democracia.

 

Publicado originalmente no Blogo do Matheus Leitão, no G1: https://g1.globo.com/politica/blog/matheus-leitao/post/2018/08/05/a-primeira-vitima.ghtml