O mundo vive uma grave contradição e ela afeta a democracia em todos os países. As economias se globalizaram, a ciberesfera (Internet mais comunicação móvel) se tornou o principal ambiente para o fluxo de ideias e para as trocas culturais. Economia e sociedade se digitalizaram. A política, enquanto isso, continuou local e analógica.
O sociólogo alemão Ulrich Beck, morto precocemente, captou bem esse movimento. A política não se globalizou, nem se digitalizou. A globalização digitalizada na economia e na sociedade ainda é um processo emergente. Está em curso e no seu princípio. Grandes ondas de mudança ainda estão por vir. Na economia, ainda mal se começou a compreender inteiramente o alcance disruptivo de tecnologias digitais que só fazem sentido num mercado digital globalizado, como blockchain. Vai revolucionar o mercado financeiro e a indústria de seguros. Um artista plástico radicado em Nova York me disse que o blockchain já está subvertendo inteiramente o mercado global de arte e alterando completamente a formação de preços das obras. As redes sociais ainda estão no seu estágio primitivo e já causam mudanças radicais.
Os governos, todos analógicos e com perspectivas puramente nacionais, reagem de forma convencional. Alguns, como os Estados Unidos, vêem a ciberesfera como algo análogo ao mercado tradicional e desenvolvem políticas analógicas para ela. Na Europa, buscam regular a ciberesfera. Na Índia tentam moldá-la como um canal de bens públicos, financiado pelo orçamento estatal, criando um recorte útil, mas acanhado, do mundo digital para o cidadão. Outros países, como a China, resolveram dominar a ciberesfera, como dominam o ambiente social físico, a socioesfera, autoritariamente, como forma de controle social e político e meio de doutrinação. Xi Jinping está dando início ao que pode ser uma nova Revolução Cultural, aos moldes da maoísta, usando armas digitais. Domina as tecnologias e as produz localmente, utilizando big data, reconhecimento facial e redes com este objetivo. É o modelo mais próximo do pesadelo orwelliano de 1984.
Todos tendem a fracassar. A ciberesfera não é um mercado convencional, como o mercado analógico, que levou o capitalismo a seu auge e lhe deu o status de único modelo econômico da transição do após Guerra Fria. É mais ágil e mais disruptiva do que qualquer arcabouço regulatório disponível. Também não se sustenta como uma infraestrutura de bens públicos. Permite incontáveis tipos de iniciativas, muitas delas controladas como vias privadas de uso comum. Nenhuma “cibermuralha”, por mais poderosa e sofisticada, resistirá eternamente aos ataques dos hackativistas. O ecossistema digital globalizado, a ciberesfera, é muito mais aberta a formas anárquicas, individuais ou coletivas, de ação do que qualquer sociedade jamais foi. Esse individualismo digital e globalizado desafia todas as formas de controle estatal, empresarial ou organizacional nascidos analógicos, mesmo nas suas formas digitais. Essas formas serão sempre uma espécie de remasterização de uma base analógica.
Esse processo de transformação digital, produz reações preconceituosas de governos e de pessoas. Os governos o vêem como uma ameaça. A pessoas acabam confundindo tudo com seu lado mais nocivo, seja como um mundo dominado por haters, um ecossistema mais afeito às fake news, do que à informação fidedigna, ou um território de sedução para o mal. Como todo artefato humano a ciberesfera e suas infinitas possibilidades têm luz e escuridão, virtudes e vícios. Todavia, tanto a globalização, quanto a digitalização são irreversíveis e processos ainda em expansão. Quanto mais rápido nos adaptarmos, mais benefícios poderemos retirar da mudança.
Na política, o dilema é mais profundo e mais complexo. O estado-nacional está se tornando o epicentro dos problemas e, principalmente, da crise da democracia. De todas as espécies institucionais desenvolvidas nos séculos 19 e 20 é a menos capaz de adaptar-se e a mais ameaçada de extinção. E a reação típica é o retrocesso. Na economia, via políticas protecionistas. Na sociedade, via autoritarismo, censura e manipulação. Nada disso terá êxito no tempo histórico, ou na história do futuro. E não há caminhos alternativos claros e simples.
A política pode se globalizar por meio de uma grande conversação digital e plural e estimular o desenvolvimento de mecanismos cosmopolitas de politização da ciberesfera. Mas a ideia de um governo global é assustadora. Parece implausível um governo global único democrático. Se houver um governo global único, o mais provável é que seja totalitário. Mesmo uma grande federação democrática da Terra, imaginada por autores de ficção científica, soa impraticável. A democracia, pelo menos como a conhecemos, se realiza no plano do estado nacional.
Mas o estado-nação, como sabemos, não foi o primeiro ecossistema a desenvolver-se como democracia. O ecossistema originário da busca por uma república democrática foi a cidade. E faz todo sentido retornar às cidades para a base de uma nova vida democrática digital. As cidades se globalizam e se digitalizam com mais naturalidade do que as nações. Podem se tornar muito mais inteligentes do que qualquer estado nacional. O encolhimento do espaço de poder e autoridade do estado-nação e o alargamento dos poderes das cidades parece um caminho muito mais plausível para compatibilizar democracia local com política global na sociedade digital emergente.
Publicado originalmente no Blog do Matheus Leitão, G1: https://g1.globo.com/politica/blog/matheus-leitao/post/2018/09/02/o-futuro-da-democracia-no-mundo-digital-e-globalizado-esta-nas-cidades.ghtml