O estado do Amazonas elegeu Amazonino Mendes para o mandato tampão de governador do estado. As eleições suplementares foram realizadas, em dois turnos, porque a justiça eleitoral cassou a chapa vitoriosa em 2014 por crime eleitoral. Amazonino Mendes (PDT) venceu o segundo turno contra Eduardo Braga (PMDB), obtendo 59,21% dos votos válidos. É um resultado emblemático do grau de disfuncionalidade de nosso sistema político e do domínio de ferro das oligarquias estaduais. Um domínio que vem desde o governo de Campos Salles, na Primeira República. Mudam os nomes, mas não mudam nem a lógica, nem a prática. Essa hegemonia passou praticamente incólume pelas transformações na sociedade e na economia brasileiras ao longo de todo o século 20 e duas décadas do século 21.
Amazonino Mendes é um velho oligarca. Iniciou sua carreira política em 1983, ao ser nomeado prefeito de Manaus para o período de 1983-1985 pelo então governador Gilberto Mestrinho, com quem, óbvio, romperia após adquirir influência e poder que lhe garantiriam o mando por conta própria. Foi governador do Estado em 1987-1990 e 1995 a 2002. Já na primeira eleição, esteve envolvido em polêmica sobre irregularidades, inclusive na contagem dos votos, duramente denunciado por seu adversário pelo PSB, Artur Virgílio Neto. Elegeu-se senador em 1991 e 1992, deixando o cargo para eleger-se novamente prefeito de Manaus. Deixou o Senado para disputar e ganhar o governo do estado, no qual ficou até 2002. Foi derrotado para a prefeitura de Manaus, em 2004, e para o governo do Estado, em 2006. Esta última derrota, na qual concorreu pelo PFL, hoje DEM, foi para, vejam só, Eduardo Braga (PMDB). Em 2008, processado por crimes em licitações, venceu o segundo turno para a prefeitura de Manaus, mas sua chapa foi cassada na primeira instância por crime eleitoral. O TRE, porém aceitou recurso dos advogados de Amazonino e o confirmou na prefeitura. O ministério público do Amazonas recorreu ao TSE, mas o recurso não foi conhecido porque o Procurador Regional Eleitoral (PRE) na época perdeu o prazo. Em síntese, voltou à prefeitura de Manaus respondendo a uma pilha de processos por crimes administrativos e eleitorais por uma tecnicalidade jurídica decorrente de um descuido do PRE. Deixou a prefeitura em 2012, retornando à disputa eleitoral este ano, para vencer o segundo turno para governador com o apoio do prefeito de Manaus, vejam só, Artur Virgílio Neto, hoje no PSDB.
É um caso exemplar de impunidade serial, de adversários que se tornam aliados, tudo para perpetuar o statu quo. É assim que a hegemonia oligárquica se faz inabalável. O resultado é o desalento dos cidadãos. Vendo-se impotentes para vencer esse poder corrompido e resiliente, vendo-o engolir nas suas malhas todos os que chegam prometendo dar-lhe combate, os eleitores vão abandonando a política. Afastam-se dessa Medusa para não se tornarem pétreos também. Esse desencanto está nos números que elidem a obrigatoriedade do voto. No primeiro turno dessa disputa, os dois ex-governadores somaram 64% dos votos e 24% dos eleitores se abstiveram de votar. Os votos nulos e brancos representaram 19% do total. Se olharmos de outro modo, somando abstenção, nulos e brancos e verificando que proporção representaram do eleitorado, veremos que o desalento chegou a 36% dos eleitores. No segundo turno, a abstenção foi de 26% e os nulos e brancos, 31% dos votos. Em relação ao eleitorado total, o desalento alcançou, portanto, 43,5% do eleitorado. Para se ter uma ideia da extensão do desalento eleitoral, ele chega a 77% daqueles que votaram em um dos dois candidatos. A soma da abstenção com os nulos e brancos como percentual dos votos válidos não é uma boa medida. Uso-a aqui só para dar uma ideia da magnitude da alienação eleitoral no segundo turno.
Não estamos imunes a que algo parecido com a eleição do Amazonas ocorra em 2018, para presidente da República. Para usar termos educados: podemos ter uma disputa apenas entre candidatos “usados”, que não representam renovação alguma, apenas a repetição do statu quo ante. Uma espécie de história política recente do Brasil reprisada, com atores um pouco mais velhos, um pouco mais desgastados, com ideias bem mais ultrapassadas. Muitos deles estarão pendurados em uma penca de processos na Justiça.
Estou debruçado há meses sobre um sem número de estudos sobre os mais variados aspectos do modelo político brasileiro. Cada vez que retomo esse trabalho me convenço um pouco mais de que essa síndrome histórica que nos aprisiona e ameaça não se resolve com o que temos chamado de “reforma política”, que nem chega a ser uma verdadeira reforma eleitoral. Mesmo juntando-se o parlamentarismo, ou o semipresidencialismo português à mudança das regras eleitorais, continuo cético a respeito de que consigamos mudar de forma significativa a substância da política brasileira.
Se podarmos todos os penduricalhos e reexaminarmos a política brasileira ,desde a experiência parlamentar do Império, passando pela Primeira República, a partir de Campos Salles, pela Segunda República, pela chamada Nova República, até esta Terceira República, no fundo as práticas têm sido as mesmas. Têm mudado pouco, só para uma atualização, mas sem mudar o foco na preservação do poder oligárquico. Os que surgem para a elas se oporem ou se adaptam e são absorvidos à oligarquia, como aconteceu com o PT, ou são expulsos do jogo. A representação política é paroquial, patrimonial e personalista. Os parlamentares decidem com os olhos nas suas clientelas locais, nos grupos especiais de interesses a que se ligam (e que mantém negócios em seus estados) e nos seus financiadores. O público, o povo, sobretudo os “sem registro” — sem carteira de trabalho, sem registro sindical, sem registro no cartório do chefe político local, sem certidão de nascimento com nexos familistas relevantes, sem amigos “com registro” — não são representados, nem considerados nos cálculos dos políticos. Há exceções? Há e são muito poucas.
Esse esquema, que tem um braço ilegal, dedicado à corrupção, à jagunçagem, ao tráfico de interesses escusos — consegue manter-se impune porque, como toda hegemonia, escora-se em uma narrativa moral que justifica os mecanismos da impunidade e as práticas políticas que desenvolveram. Narrativa que vem da cultura bacharelista da elite brasileira, voltada para o que o sociólogo Edmundo Campos Coelho chamou muito apropriadamente de “profissões imperiais”, entre as quais destacava-se o direito. Já no Império, como mostra José Murilo de Carvalho, chega-se ao domínio dos magistrados. Não é invencionice o dito popular de que toda família de elite no Brasil tinha um juiz, um político e um bispo. Algumas ainda têm. Essa cultura dos bacharéis ligados à oligarquia política alargou os conceitos de presunção de inocência e transitado em julgado, de acordo com a conveniência dos chefes. Uma cultura que se enraizou e assegura, até hoje, a impunidade dos políticos e dos ricos. Os pobres que são presos, na sua maioria mofa nas cadeias, sem sentença sequer na primeira instância, às vezes sem denúncia.
Pressionado pela opinião pública, cada vez menos convencida das narrativas justificatórias da elite brasileira, e pela magnitude da malha de corrupção que se espalhou pelo sistema político brasileiro, a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, restringiu essa amplitude dos conceitos. Essa revisão permitiu que a sentença passasse a ser cumprida a partir de sua confirmação por um colegiado de segunda instância. É uma reinterpretação moderada. Na maioria das democracias, a pena começa a ser cumprida a partir da primeira sentença e apela-se na prisão. É só ler com atenção as justificativas daqueles ministros do Supremo Tribunal Federal que defendem o retorno ao lato entendimento, segundo o qual a prisão só pode se dar após esgotadas todas as numerosas possibilidades de recurso. Só falam da presunção de inocência e dos direitos dos réus. Não tratam dos riscos à sociedade, da gravidade dos crimes, da forma desabrida e despudorada como agem, dos direitos das vítimas e seus familiares nos crimes, por exemplo, de homicídio. Faz parte desse sistema de impunidade institucionalizada a abertura de possibilidades quase infinitas de recursos, de agravos, de agravos dos agravos, dos agravos ao infinito. Um labirinto construído para aprisionar a sociedade a esse esquema de poder oligárquico.
Curioso é que, até agora, a única peça institucional do estado brasileiro que tem confrontado esse esquema de poder degradado e impune é a magistratura e o ministério público. Instituições que são parte integrante da cultura dos bacharéis e das profissões imperiais. Um bom estudo sociológico dos médicos e engenheiros ao longo da nossa história, de suas relações com o poder e da manutenção de seus privilégios e paradigmas profissionais mostrará que o sociólogo Edmundo Campos Coelho viu fundo e longe, quando debruçou-se sobre essas profissões imperiais. Mas a autonomia conferida às instituições judiciais e o crivo dos concursos que, de um lado, forçam a meritocracia e, de outro, abrem canais de circulação na elite jurídica àqueles que vêm dos andares de baixo do edifício social e se qualificam, começou a apartar segmentos dessas corporações da cultura oligárquica dominante. Como mostraram Marcus Mello e Carlos Pereira, esses mecanismos de freios e contrapesos são os principais elementos de garantia de qualidade mínima da democracia brasileira hoje. E exatamente por isso estão sob ataque de dentro do própria sistema judiciário, por parte daqueles que nele representam os interesses oligárquicos e por parte das elites políticas e intelectuais compactuadas com o domínio oligárquico.
Mais que a reforma política, é a garantia de que se avançará na erradicação dos mecanismos de impunidade das elites que tem alguma chance de começar a mudar a estrutura de incentivos que promove o domínio oligárquico entre nós. Com a punição dos corruptos, cria-se um forte desincentivo às práticas costumeiras de corrupção política. Mais que isso, combate-se o desalento dos cidadãos, a alienação eleitoral. Aí sim, regras que permitam competição mais justa, que não beneficiem desproporcionalmente mais os três ou quatro grande partidos que ocupam a presidência da República e controlam a maioria no Congresso Nacional, podem abrir caminho para a renovação de lideranças e a reforma das práticas políticas no país.
Há um elemento crucial ausente das discussões sobre reforma política, que é o federalismo hiperconcentrado. Esse federalismo macrocéfalo, no qual Brasília centraliza tudo, tem consequências extremamente danosas para a qualidade da democracia brasileira. Ele paroquializa a política, porque toda minúcia passa pelo orçamento da União, quase toda iniciativa precisa de autorização da União. Impede que o parlamentar federal tenha uma visão e uma política de amplitude nacional e estratégica, voltada para o futuro. A dependência do município e do Estado ao orçamento e à autoridade da União é o nexo que une as oligarquias e conecta o mandonismo local ao domínio da elite federal. Esta elite federal está umbilicalmente ligada às oligarquias estaduais e aos chefes locais. O único caminho para romper esses nexos é o da descentralização, acompanhada de profunda e coerente reforma orçamentário-fiscal e tributária.
Sem enfrentarmos as questões-chave que perpetuam esse domínio político oligárquico que remonta ao Império e à formação da república, qualquer mudança de regra é perfumaria. Arrisca intoxicar ainda mais o ar já rarefeito da política brasileira. Só mudança de regras não nos levará muito longe. Só cadeia, também não. É preciso cadeia, novas e boas regras e mais democracia, com muita descentralização, para que possamos romper com o mandonismo oligárquico que ainda impera no país.