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O Doce, a morte dos rios e a memória das águas

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O Doce não foi o meu rio, mas era o meu rio. Eu o conheço desde de minha infância e, sem saber, passava em sua primeira nascente, várias vezes ao ano, no caminho entre Belo Horizonte e a cidade de meu pai, Barbacena. Essa nascente fica em lugar de nome bem entranhado na cultura mineira, onde a cachaça é um valor patrimonial, Ressaquinha. Agora o Doce está à beira da morte e seus agressores prestes a escaparem ilesos.

Sempre tive paixão pelos rios. Cada fase de minha vida foi marcada por um rio, do qual guardo vívida lembrança. Na infância, foi o das Velhas. Na pré-adolescência, o São Francisco. Na juventude, o Descoberto, de Goiás. Na maturidade, os rios do Pantanal e da Amazônia. Sobre o rio das Velhas, minha lembrança mais viva era das mulheres dos caboclos sertanejos lavando suas roupas brancas nas águas límpidas. Intuía o destino do rio, embora não tivesse a menor noção de que, no futuro, aquelas águas limpas se tornariam tóxicas. Dessa intuição nasceu uma pergunta que entrou em vários escritos meus de juventude: lavadeiras do rio das Velhas, lavadeiras mineiras, vendo o rio acabar, o que passarão a lavar? Hoje ele é um curso d’água quase imprestável, quase sem vida.

A viagem inesquecível da minha pré-adolescência foi com meu bisavô Juca, meu pai Fernando e meu tio Renato, em um jipe Willys, do meu Curvelo natal, via Corinto, até Três Marias, para ver a piracema no São Francisco. Meio aventura, meio deslumbramento, cortando estradas de chão, pelo poeirão vermelho do sertão cerrado, a viagem ficou indelével em minha memória. E toda vez que vejo o Chico, porque rio não tem idade, definhando, assaltado por esgotos, mau uso e transposição das águas que já não tem, lembro-me do espanto de vê-lo no entardecer, grandioso, caudaloso, parecendo imortal. Agora, pegam seu corpo minguado e maltratado e querem que ele dê mais de suas águas. Como uma doação de sangue feita forçosamente por alguém com grave anemia. Em breve, não chegará ao mar. Hoje, perdeu as forças e o mar já o invade por quilômetros. Quando era forte e impoluto, avançava sobre o oceano, adoçando suas águas por muitas milhas náuticas. A ponto de permitir que navegantes já afastados da costa ainda delas bebessem tal seu volume e força a neutralizar o sal.

O rio da minha juventude foi o Descoberto, na divisa de Brasília com Goiás, dele vem mais da metade da água consumida na capital. Ele nasce no alto dos córregos Barracão e Capão da Onça, em área que hoje pertence a Brazlândia. Já no início da sua caminhada, começa a sofrer o impacto da ocupação desordenada e da agricultura predatória. Mais abaixo, forma o lago da barragem que abastece o DF, área precariamente protegida por uma APA. Saindo da APA, é um desastre só. Como meu rio das Velhas, ele se torna um fluxo podre, contaminado pelos efluentes agrotóxicos e pelos esgotos do crescimento urbano sem saneamento e sem regra, e vai contaminar o rio Corumbá.

Os rios do Pantanal e da Amazônia, só pude conhecer já bem adulto. Não tinha mais a romântica ingenuidade da juventude. Ao descer deslumbrado o rio Negro, no Pantanal, uma região ainda bastante preservada, por ser de mais difícil acesso, com uma profusão impressionante de aves, mamíferos, répteis, sabia que era frágil e que, como todas as águas do Brasil, está ameaçado.

O outro rio Negro, no Amazonas, uma paixão particular, à qual retorno sempre que posso, não deixa ilusões. Já no porto de Manaus se vê que ninguém tem respeito algum por aquelas águas. Rio acima, encontra-se uma das maravilhas do Brasil, as Anavilhanas. Mas aquele belíssimo labirinto de ilhas é hoje uma rota-esconderijo para traficantes que descem vindos da fronteira na região da Cabeça de Cachorro e vão corrompendo ribeirinhos, principalmente jovens.

Não, as águas do Brasil não vão bem. Estão desprotegidas e atacadas de todos os lados. Eu vi a sanha com que os fazendeiros do entorno querem assaltar o parque Grande Sertão: Veredas, que começa em Minas, na cidade de Chapada Gaúcha, e se derrama por Goiás, até a Bahia. Ele protege duas riquezas. Parte do trajeto percorrido por Riobaldo e Diadorim na estória de Guimarães Rosa e as águas Cerrado. Cerrado é manancial, fonte de água e vida, mas a maioria o vê como mato sem importância. Basta ver o que está acontecendo nas fazendas de soja no entorno do parque Grande Sertão, onde não se deixou uma árvore de pé. Sem vegetação e mata ciliar, foram-se as águas, acabaram-se as veredas. Está virando deserto. Agora querem assaltar suas águas para irrigar a soja transgênica. Para entender o que digo, é preciso caminhar por uma vereda, banhar-se nas águas limpas de um Caninanha, que é preto, ou de um Preto, que é quase translúcido. Ver para crer, a simbiose entre sertão, vereda e a água da vida. Ou então, ler Grande Sertão: Veredas. É simples, leia as duas primeiras páginas em voz alta, mantenha o ritmo, lendo, em silêncio, mais trinta páginas. Pronto, o encantamento daquele mundo já invadiu sua alma irremediavelmente.

O Brasil acha que suas águas são inesgotáveis e elas não são. Os rios da Amazônia são vistos pelos desavisados como potencial hidrelétrico. Não são. Eles são parte da vida da floresta e seus povos e valem mais dessa forma, para nós, do que alimentando projetos duvidosos, na engenharia e na moral, como Santo Antonio, Jirau e Belo Monte. Temos muita biomassa, muito ar e muito sol, para acharmos que só nossas águas podem ser combustível. Hidrelétricas em rios sedimentosos, repletos de matéria orgânica não são limpas. Podem emitir mais que uma termelétrica fóssil e não são econômicas. Só se na contabilidade houver algoritmos camuflados, transformando perdas em lucros. A mão invisível da oportunidade saqueando o patrimônio natural e os cofres públicos.

Claro, nada é para sempre. O São Francisco está por um fio e o Doce moribundo, afogado na lama tóxica da mineração mal feita, negligente e predatória. Se ele morrer, podemos escrever: aqui jaz o Doce, vítima das mineradoras da empresa que tomou o nome de seu vale e da omissão e descaso de governos em série, do Brasil e das Gerais. Requiescat in pace.

Nossas águas são, como nossas matas, uma riqueza. Achamos que podemos usar e abusar delas, como quisermos, porque estão aí para isso. Não podemos. Achamos que nossas águas não acabariam. Vão acabar. Como já acabaram os banhos, as lavadeiras e a pesca em tantos rios do Brasil. O Brasil tem muita água e rios lindos. Mas eles pedem socorro.