A energia está no centro dos esforços para conter a mudança climática. A geração de eletricidade e os transportes são, de longe, a maior fonte de emissões de gases estufa. A transição de uma economia baseada em energia de fontes fósseis, para uma economia com energia renovável é decisiva para a redução das emissões e tentar evitar mudança climática catastrófica.
A mudança climática já dividiu muito as opiniões. Mas o consenso científico hoje é avassalador. Não existe uma só organização científica de peso, uma única academia de ciências, que não afirme que a mudança climática é um fato real e presente e que sua aceleração é causada pela ação humana. Os que se contrapõem a esse consenso são poucos e já não há entre eles cientistas especializados em clima, com qualificação e pesquisa de peso.
Energia divide muito mais. O uso de energia nuclear opõe de forma radicalmente polarizada aqueles que defendem a energia renovável e que não emita gases estufa. A energia nuclear
não emite gases estufa. Mas não é limpa. Gera uma quantidade apreciável, embora em declínio, de resíduo radiativo. Seus defensores vêm nela a única saída rápida para a mudança de padrão energético. Seus críticos argumentam que resolve-se um problema que ameaça a humanidade e agrava-se outro que também ameaça a humanidade. Confesso que tenho sentimentos contraditórios sobre energia nuclear. Fui convidado tempos atrás para falar em um congresso de técnicos e cientistas sobre o tema. Resolvi estudar as evidências e os argumentos. É inegável que é a única fonte dominada que tem escala para substituir o carvão e o óleo rapidamente na geração de eletricidade. É verdade que não emite. Fiquei convencido de que as novas tecnologias geram menos resíduo e resíduo de menor intensidade radiativa. Ainda assim, esse resíduo precisa de manejo e armazenagem seguros por algumas centenas de anos. Além disso, a maior parte do resíduo hoje produzido ainda vem de usinas com tecnologias mais velhas, que geram mais lixo nuclear e mais radiativo, cujo risco de contaminação letal perdura por muitos séculos. A pergunta que fiz no congresso e que não tem resposta adequada foi: quem garante que haverá governança estável de qualidade capaz de assegurar a integridade dos recipientes e dos locais de armazenagem por pelo menos 300 anos? Meu treino em ciência política me diz que não há como dar essa garantia, mesmo nas democracias mais maduras e avançadas do mundo.
O filme documentário também divide opiniões desde os seus primórdios. Há correntes opostas sobre a ética e a técnica do documentário. Uns defendem a máxima objetividade possível. Outros dizem que a objetividade é impossível e o cineasta deve interpretar a realidade para sua audiência. Segundo eles, mesmo o documentário é um filme autoral. Esse debate já foi mais aceso. No começo do moderno documentário, seguidores do cinema verdade, de Jean Rouch, preconizado por Dziga Vertov, ensinavam que se deveria combinar a improvisação ao uso direto da câmera para desvendar a verdade por trás da realidade aparente. Outros diziam que o documentário deveria partir de um roteiro e que os entrevistados e retratados deveriam ser dirigidos para garantir a qualidade do resultado. Joris Ivens, um dos pais do documentário moderno, comentando seu excepcional filme sobre a guerra civil espanhola de 1936, cuja estratégia geral diz ter sido contribuição direta do escritor e jornalista Ernst Hemingway, dá uma resposta simples a essa questão. Ele diz que havia imaginado filmar seguindo um argumento escrito previamente. Mas foi impossível fazê-lo em campo. Como entrevistar pessoas em meio àquela matança toda? O único jeito era filmar o que estavam vendo. Ele conta como foram filmando cenas da guerra, pessoas, moribundos, cadáveres, e diz: “Você é capaz de pensar muito claramente porque você está em uma guerra popular na qual você tem um lado. Não há hesitação.” Mas defendia a edição cuidadosa das imagens depois. Ele compara o documentário ao filme noticiário. “O filme noticiário nos conta onde-quando-o quê; o filme documentário nos conta por que e as relações entre os eventos”, diz. Para ele, o documentário não conseguiria realizar seus objetivos sem alguma intervenção artística. Lembrei-me dessa velha leitura das reflexões de Joris Ivens sobre sua prática com documentários, vendo os filmes sobre o tema energia da 3a Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental. O autor de nenhum deles parece ter dúvidas sobre de que está. Alguns são muito explícitos, como a defesa da energia nuclear em Pandora’s Promise, de Robert Stone, ou a denúncia dos efeitos da radiação do acidente da usina nuclear de Fukushima, em A Record of Living Things, de Masanori Iwasaki, da explosão quase desconhecida da usina nuclear Mayak ao sul dos Urais, em Metamorphosen, de Sebastian Mez, ou do acidente que desloca e separa uma família, em Land of Promise, de Sono Sion. Outros são mais sutis, como A Journey to the Safest Place on Earth, de Edgar Hagen, sobre os riscos de armazenamento do resíduo das usinas.
Em sintonia fina com os dilemas de nosso tempo, os filmes da mostra refletem a ameaça da mudança climática, o confronto em torno da energia nuclear; a falta de energia que aflige grande parte dos mais pobres do mundo; a promessa do lítio. Dos sete documentários convidados para a mostra, cinco são sobre energia nuclear. Falarei deles ao final.
Powerless, de Fahal Mustafa e Deepti Kakkar mostra o outro lado do problema energético: sua falta. A escassez de energia afeta principalmente os mais pobres e sem poder do mundo. Neste caso, energia escassa e de má qualidade causa conflito entre os que a provêm e os que não a recebem, entre os que têm e os que não têm. O cenário é Kanpur, na Índia. A história, que muitas vezes chega a parecer ficção, gira em torno dos “gatos” (katyya) e o protagonista central é Loha Singh, um “mestre” dessas ligações clandestinas, (katiyabaaz). A câmera mostra todo o tempo a intrincada e precária teia de fios saindo das linhas principais para ligá-las ilegalmente a casas sem energia. Os diretores usam muito o recurso da câmera direta para capturar as contradições sociais e políticas que correm pelo cotidiano da população e da vida pessoal de Loha. A fotografia explora com precisão o “claro-escuro”, contrastando os momentos em que há luz e os apagões frequentes. As imagens em baixa luminosidade são particularmente interessantes do ponto de vista da estética do filme. Os autores não adotam uma marcada posição entre os dois lados da disputa, a companhia elétrica e o mestre das ligações ilegais, mas não escondem sua maior identificação com Loha.
The Lithium Revolution, de Andreas Pichler, volta-se para outra questão crucial. A armazenagem barata, eficiente e em escala suficiente de energia. A única alternativa em processo avançado de desenvolvimento é a bateria de lítio-íon. Mas ela ainda não atende plenamente a esses requisitos. Armazenagem adequada permitiria que a energia das fontes solar e eólica ganhasse escala e pudesse substituir tanto os combustíveis fósseis, quanto a nuclear. Ela é a chave, também, para a e-mobilidade, baseada em veículos elétricos com autonomia comparável aos veículos com motores a combustão. O filme, algumas vezes, resvala para a pressão sobre o governo da Bolívia para abrir seus enormes campos de lítio no deserto de sal de Uyuní à exploração internacional. Do ponto de vista da estrutura narrativa, aproxima-se de Pandoras’s Promise, entrevistando personagens do mundo do lítio que tratam de suas promessas, limitações atuais e futuro.
Pandora’s Promise, uma produção muito bem cuidada, adota com toda a transparência a promoção da energia nuclear. Centra-se em depoimentos claramente estruturados, diante de um câmera geralmente parada. Mas a edição é dinâmica, a fotografia limpa, as locações bem escolhidas. O documentário visita algumas áreas icônicas do dilema nuclear, como Chernobyl e Fukushima, palcos dos piores acidentes nucleares da história. Seus protagonistas principais são figuras de prestígio da indústria nuclear e do ambientalismo. Conheço bem a trajetória de três deles. Todos autores importantes no tema ambiental e da mudança climática. Stewart Brand, foi um pioneiro do lado verde da contracultura, com a publicação do The Whole Earth Catalog, nos anos 1960 no EUA. Mais recentemente, criou a The Long Now Foundation, dedicada a estimular visões de longo prazo e à disseminação de ideias inovadoras que ajudem a humanidade a enfrentar seus principais desafios. É mestre em adotar posições polêmicas. Mark Lynas, é autor de dois livros sobre a ameaça real da mudança climática, High Tide: the truth about our climate crisis e Six Degrees: our future in a hotter planet. Sua conversão recente à energia nuclear e aos transgênicos foi recebida como um escândalo entre os ambientalistas europeus. Michael Shellenberg sempre militou em causas socioambientais. Em 2004, provocou intensa reação no meio ambientalista, ao circular, com Ted Nordhaus, artigo muito polêmico, com o título provocador de “The death of environmentalism” (“A morte do ambientalismo”). Eles expandiram o argumento de que o ambientalismo precisava mudar seu foco e sua narrativa para voltar a ter vitórias no livro Break Through: from the death of environmentalism to the politics of possibility”. Os dois mantém o The Breakthrough Institute, de orientação moderadamente conservadora, que defende políticas públicas para energia e mudança climática, entre outras áreas. São fortes defensores de energias renováveis e eficiência energética.
Os melhores argumentos do filme são aqueles a favor da energia nuclear no quadro de acelerado crescimento do risco associado à mudança climática. O filme me impressiona menos quando minimiza os efeitos de acidentes nucleares e os riscos associados aos resíduos radiativos. Ao tratar das posições contrárias à energia nuclear, não entrevista nenhum autor do mesmo porte de seus protagonistas. Prefere mostrar a posição mais impressionista de militantes sanguíneos. Mas, como disse, Pandora’s Promise é transparente no seu propósito de promover a energia nuclear. Não faz questão de tratar com o mesmo peso o outro lado. É um bom filme, com bons argumentos, que vai dar o que falar. Mas não me converteu.
A Record of Living Things é um contraponto acautelador do otimismo inevitável de Pandora’s Promise. Quase um “road movie”, documenta a busca de um cientista por criaturas vivas nas áreas afetadas pelo desastre de Fukushima, ainda vedadas aos antigos habitantes. Quer registrar os efeitos que a radiação causou nos animais. Talvez a evidência mais clara mostrada pelo filme seja a baixa ocorrência de muitas espécies e a radiação presente nas entranhas de peixes. Mas ao sair em busca das criaturas vivas, encontra as muitas marcas da tragédia e nos dá uma dimensão menos emocional, menos no calor da hora, da extensão que foi a destruição e o drama social, não apenas do tsunami, mas também das explosões dos reatores de Fukushima. A câmera dá a extensão real, humana e física da tragédia que ainda se desenrola no entorno de Fukushima. Encontra personagens humanos muito interessantes vivendo na área. A Record of Living Things tem o DNA dos documentários mais clássicos. Uma estética menos limpa, com a câmera direta registrando cada passo dessa jornada pelas ruas fantasmas e entrevistas com personagens locais e especialistas.
Ao ver os dois filmes em sequência, ficou-me uma séria dúvida. O primeiro, registra níveis desprezíveis de radiatividade nos sítios que visita em Fukushima. O segundo, registra níveis acima do tolerável para os seres humanos. Quem tem razão? Talvez essa não seja uma pergunta a ser feita aos documentários, mas uma questão para a ciência resolver empiricamente, com metodologia sistemática.
Land of Hope não é um documentário. Em certo sentido, complementa, com dramaturgia e poesia, A Record of Living Things. É uma ficção sobre o impacto disruptivo de um acidente nuclear em duas famílias vizinhas no Japão rural, após um terremoto seguido de um tsunami. Ele se passa na fictícia província de Nagashima (Nagasaki + Hiroshima ou Nagasaki + Fukushima?). O foco principal é na família Ono. Esteticamente, Sono Sion recorre, de maneira muito hábil, à forma narrativa do documentário, com o claro objetivo de buscar o máximo de realismo, por mais de dois terços de sua longa duração. Contudo, o filme contém numerosas alusões simbólicas, profundamente enraizadas na cultura japonesa. Ao final, a fotografia e a narrativa adotam um tom poético e quase onírico, fortemente dramático, fechando uma estória contada com sensibilidade e emoção. Fukushima é lembrada repetidamente, como para “colar” o real ao ficcional. A referência ao acidente real também projeta para o futuro e as futuras gerações o risco e as conseqüências da energia nuclear. O acidente de Nagashima se daria depois de Fukushima. O centro da narrativa é o velho chefe da família Ono, que vive uma terna relação com sua mulher dominada pela demência senil. Os dois atores têm desempenho marcante, de grande sensibilidade. Toda a preocupação dele e o olhar convergente da estória é com o futuro, representado primeiro pelos personagens mais jovens e, em última instância, pelo neto ainda por nascer.
A Journey to the Safest Place on Earth, de Edgar Hagen, é uma proposta. Hagen, um documentarista conhecido por seu estilo de filme-reportagem, adota a estratégia de perguntar exaustivamente sobre a existência real de um local completamente seguro para servir de depósito para os resíduos nucleares gerados em todo o mundo. O documentário tem um personagem central, a quem se dirigem a maioria das perguntas de Hagen. Ele é Charles McCombie, que tem liderado essa busca por um local seguro para o lixo nuclear por 35 anos. Como o próprio Hagen diz, neste filme ele embarca “numa jornada que examina o complexo processo de busca pelo local mais seguro da terra”. Ele descreve seu documentário como “focalizado nas pessoas que têm como objetivo resolver esse problema para nós, retratando seus esforços, preocupações, batalhas, esperanças e fracassos. O protagonista central, Charles McCombie, nunca perdeu a fé um momento sequer”. O filme recolhe numerosos depoimentos e as perguntas simples, sinceras e nem por isso menos argutas de Hagen, vão contando uma história sem fim. Dá a volta ao mundo de Yucca Mountain ao deserto de Gobi, à Suécia e à Austrália. A busca é exaustiva e não encontra esse lugar seguro. No meio do caminho, expõe as estratégias de marketing da indústria nuclear e os conflitos que essa procura incessante provoca. Na sua narração, em primeira pessoa, Hagen sublinha suas dúvidas. Ele fez descobertas pessoais enquanto filmava . “No meio dessa luta [para filmar os resíduos radiativos] formou-se em mim a ideia de que só encontraremos o local mais seguro se conseguirmos coletivamente desafiar a extrema pressão das limitações econômicas, não acreditar cegamente em tudo que nos é dito e não aceitar as afirmações de fato como verdades absolutas.”
O espanto causado por Metamorphosen começa na primeira imagem, com a belíssima fotografia em preto e branco, muitas vezes mostrando cenas quase quadro a quadro, como uma exposição de fotos. De todos, é o filme com estética mais sofisticada. O espanto continua, à medida em que vai revelando a extensão do acidente ocorrido na usina nuclear de Mayak, a primeira a produzir material físsil para as bombas russas, ao sul dos Urais, em território soviético, no ano de 1957, e o inaceitável acobertamento da verdade pelo estado soviético por décadas a fio. O filme é de uma beleza inesperada, narrando uma situação desoladora mais de 50 anos depois. Ao assistir a Metamorphosen terminei convencido de que o governo soviético usou como cobaias as populações dos lugarejos às margens do rio Tetcha, cujas águas continuam radiativas, para estudar o efeito de explosões nucleares em pessoas em um determinado raio de distância do epicentro. A câmera passeia pelas paisagens da região, pelos rostos e pelo cotidiano das pessoas e quase não precisa palavras para contar essa história de desolação, abandono, horror e expectativa. O ritmo das imagens, surpreendentes em sua estética cinematográfica, nos dá a dimensão exata da lenta agonia daquelas pessoas. As narrativas são impressionantes e singelas. Metamorpohosen não nos deixará esquecer o que foi encoberto por tanto tempo pelo autoritarismo e pela censura.
Escrito para a seção de energia do catálogo da 3a Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental 18-14 de novembro de 2014: http://www.ecofalante.org.br/mostra2014/temas/index/idt/5