A Argentina persegue fantasmas há muito tempo. Vive dividida entre alguém que encarne o Perón mítico de mãos dadas com uma Evita utópica, e um personagem que porte uma racionalidade indefinível considerada moderna que liberte o país da miragem peronista em definitivo. Encontro nos versos do tango Sin esperanza, de José Maria Contursi e Joaquín Mora, de 1939, esse espírito que domina a eterna busca argentina, “cual un fantasma me quiere envolver el desconcierto de la realidad”.
Desesperançados, os argentinos escolheram a Javier Milei, o demolidor com sua marreta enraivecida a abrir pretensos espaços para construir vagas ilusões. Não confiaram no prestidigitador que oferecia sua metamorfose em outro ser para fazer diferente do que fez. Massa, conhecido por sua palavra inconvicta, não conseguiu convencer o eleitorado e ao peronismo não kirchnerista que, eleito, seria diferente do que foi. A Argentina muda mas não se livra de seu carma inflacionário nem da moléstia social que a leva à decadência por adiamentos sucessivos do dia seguinte.
Outro verso do tango Sin Esperanza interpreta bem esse quadro “cómo he cambiado desde que me fui enceguecido tras otra ilusión”. Milei terá que demonstrar rapidamente que tem mais ferramentas em sua caixa além da marreta que brandiu por toda a campanha. Se não construir fundações para a governabilidade e apresentar um programa de enfrentamento da crise, fracassará antes de conhecer todas as dependências da Casa Rosada.
A vitória de Milei é um cenário disruptivo. A derrota de Massa define quase automaticamente a primeira liderança peronista, Axel Kicillof, o governador da província de Buenos Aires, que é o jovem herdeiro do kirchnerismo. Ele foi politicamente inventado por Cristina Kirchner. Mas, a vitória de Milei representa um golpe provavelmente fatal ao kirchnerismo.
Neste ano, que pode ser o prenúncio de um trágico 2024, a Argentina resolveu escolher um aventureiro descontrolado da extrema-direita a um político saído do sistema partidário tradicional e que fracassou no comando da economia. Embolada no ressentimento causado pelo empobrecimento de grande parte de sua classe média e mirando no horizonte uma inflação de 300%, sem forças foi às urnas sabendo que quem elegesse nada poderá fazer no curto prazo que resulte em alívio verdadeiro das dores da inflação e da pobreza. O povo está ciente de que há um plano a ser desenhado e montado nos próximos aflitos meses para apagar o foco hiperinflacionário. Não votou com expectativas fundadas e sim com raiva e desalento. Votou contra o kirchnerismo.
Volto aos versos de Contursi que retratam melhor seu país que qualquer análise. “¿Será, tal vez, que la emoción me arrastra al espejismo? ¡Pobre de mí!… ¡Que ya no puedo ni conmigo mismo!”
Não há democracia que deixe de sofrer abalos e entrar em sendas de alto risco de ruptura, quando as escolhas políticas são orientadas pela raiva, pelo ressentimento e pelo desalento. Este tem sido o combustível que move o espectro do neofascismo por todo o mundo ocidental.
As emoções a quente superaram a força dos interesses materiais. Neste quadro emocionalizado, os interesses materiais em lugar de alimentar demandas e expectativas objetivas levaram ao desencanto. As perdas materiais e as frustrações com as promessas vãs das campanhas passadas nutriram o desalento, a raiva e o ressentimento.
A Argentina corre um enorme risco de atravessar o tango existencial. Uma dança trágica, abraçada à hiperinflação que as ilusões de campanha turbinadas pela inteligência artificial criaram um cenário por um momento tolerável para oeste bailado cênico, cívico e dramático.
Javier Milei precisará de muita habilidade, paciência e poder de persuasão para conseguir os acordos necessários para construir a governabilidade nas relações com um Congresso dividido, sem maiorias e desacostumado de fazer consensos. Tudo o que se sabe dele indica que nunca demonstrou ter tais aptidões.
Terá a seu favor a diferença histórica de 56% a 44%. Creio, sem ter tido tempo de vertificar, ter sido a maior derrota já sofrida por um candidato peronista para um adversário da direita. No caso, extrema-direita. Tão grande diferença dá a Milei legitimidade e a atenção dos políticos para negociar a governabilidade.
Sergio Massa teve uma atitude democrática exemplar. Antecipou-se ao resultado oficial e, sabedor da tendência inexorável das urnas, felicitou Milei pela vitória e prometeu uma transição imediata e transparente. Que não seja o último ato democrático na Argentina.