O que o Brasil está vivendo é inédito na Terceira República, iniciada com a Constituição de 1988. Ameaças ostensivas à democracia feitas e orquestradas pelo presidente da República. Manifestações políticas de militares da reserva e da ativa. Ministros do Supremo Tribunal Federal e do TSE se vendo compelidos a defender diariamente o estado democrático de direito e o processo eleitoral contra investidas nitidamente desestabilizadoras e golpistas. O presidente do Senado recorrentemente se pronunciando sobre a necessidade de que se observem os preceitos democráticos e se preservem os elementos fundacionais do estado democrático de direito. Ameaças e riscos do tipo que nós estamos vendo hoje à democracia brasileira só ocorreram no período prévio ao golpe de 1964.
Foi por estas razões que um grupo de acadêmicos ligados a departamentos de ciência política, especialistas, intelectuais públicos com notória atividade no campo da análise política e juristas, reunidos pelo Observatório para Monitoramento das Eleições, Demos fez representação ao Relator Especial das Nações Unidas para a Independência de Juízes e Advogados — setor da ONU que cuida exatamente da independência do judiciário e do processo — solicitando uma visita formal de observação ao Brasil para produzir relatório sobre as ameaças à democracia, ao Judiciário e ao processo eleitoral.
Nessa queixa, o que o Observatório para Monitoramento das Eleições, o Demos, diz que o sistema judicial brasileiro está sob ataque. O Brasil tem um sistema de justiça eleitoral independente, autônomo, separado do sistema de provimento de justiça comum. E está sob ataque do próprio presidente da República. É uma clara e concreta ameaça à credibilidade das eleições. Está evidente que, por trás desses ataques, há um plano de Bolsonaro para, no caso muito provável de sua derrota em outubro, considerar as eleições fraudadas e tentar anulá-las. Há fundadas razões para se acautelar
Ninguém sabe qual ao certo a quantidade de apoio militar que o Bolsonaro tem. Mas está claro que tem este apoio inclusive entre oficiais da ativa. As movimentações políticas de generais recém-saídos do serviço ativo e com conexões conhecidas com colegas em comando de tropa nunca foram tão intensas e ostensivas desde as preparações para o golpe de 1964. Até mesmo institutos de estudos militares produzindo planos políticos para serem executados até 2035 apareceram, fazendo lembrar a experiência do sistema IPES/IBAD criado por militares e setores da elite civil na articulação para o golpe.
As anomalias político-institucionais em série que têm sido identificadas por numerosos analistas e pesquisadores levaram à mobilização da academia e da intelectualidade para acompanhar e denunciar essas manobras irregulares e inconstitucionais e apoiar as poucas instituições de freios e contrapesos que ainda reagem. Essa foi exatamente a intenção do Observatório nesse pedido ao relator especial da ONU. Uma missão que verifique as condições em que estão sendo feitas as eleições e que dê mais visibilidade global, ao processo no Brasil.
Em pronunciamento recente, o ministro Edson Fachin, presidente do Superior Tribunal Eleitoral, afirmou que as eleições devem ser e serão realizadas sob controle do poder desarmado. Exatamente porque a justiça eleitoral e as instituições democráticas em seu conjunto constituem um poder desarmado que ações como estad o Demos são necessárias e relevantes. A única forma de um poder desarmado se defender e evitar a intervenção ilegal e autoritária do poder armado — as forças armadas — é buscando inibi-la por meios legais e legítimos. Buscar aumentar o número de observadores internacionais com autoridade pública ou com expertise acadêmica e jurídica é um meio fundamental para promover esta inibição de abusos e tentativas golpistas.
Não se espera que a ONU tenha poder de sanção, um poder efetivo. Mas ela tem um pode moral e tem a capacidade de dar visibilidade global, de alertar a imprensa mundial para o que está acontecendo no Brasil. Há consciência de que se trata de um poder moral e não jurisdicional. É o que chamamos de soft power, porém, ele pode constranger, tornar absolutamente visíveis as más intenções do governante e seu aliados, ajudando a inibir suas ações antidemocráticas. Quanto mais observadores internacionais, maior a eficácia deste soft power e é exatamete por isto que Bolsonaro está vetando a vinda de observadores oficialmente convidados.
A necessidade de buscar ampliar a visibilidade mundial do que se passa no Brasil se deve, também, ao fato de que o ataque de Bolsonaro às instituições começou no seu primeiro ano de mandato. Como outros autocratas em vários países, ele vem solapando, debilitando e neutralizando as instituições que fazem parte do sistema de freios e contrapesos, de salvaguardas da democracia.
O ataque às instituições vem do início do governo, em vários casos com sucesso, limitando a capacidade de impor sanções a atos ilegais do presidente. O desmonte das instituições que implementam a promessa da democracia de proteção aos direitos humanos, proteção aos interesses difusos de minorias como as populações indígenas, de proteção ao meio ambiente e geração de bem-estar, serve ao propósito de desacreditar e deslegitimar a democracia.
A Procuradoria Geral da República foi capturada pelo Bolsonaro, ao nomear para procurador geral, Augusto Aras, nome sem legitimidade e do braço em extinção da carreira que segue regras distintas. Aras entrou pela porta dos fundos, atropelando a lista tríplice votada pelo ministério público.
A cúpula da Câmara dos Deputados foi cooptada por Bolsonaro, por meio do orçamento secreto, controlado por Arthur Lira, presidente da Mesa. Lira acaba de afastar o deputado Marcelo Ramos (PSD-AM) da vice-presidência, por ordem de Bolsonaro, usando uma manobra regimental, por lhe fazer oposição.
O senado brasileiro tem atuado com certa timidez, porém positivamente. Seu presidente, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) tem participaçao residual no manejo do orçamento secreto, mas é apoiado por uma coalizão mais plural do que a que elegeu Lira. Após a remoção do seu correlligionário de partido da Mesa da Câmara, Pacheco voltou a defender a democracia e chamou atenção para a inviolabilidade também do direito de fazer oposição ao governo. Vivemos este tempo anômalo, em que o óbvio precisa ser repetido com pompa e circunstância.
A maior parte da ativação das salvaguardas democráticas ficou concentrada no Judiciário. É por isso que Bolsonaro ataca sistematicamente o Judiciário e seus ministros. Porque tem sido o braço do sistema de freios e contrapesos que tem sido provocado repetidamente para atuar e o que atua com mais desenvoltura e autonomia. É, portanto o maior obstáculo aos propósitos de Bolsonaro.
O sistema eleitoral brasileiro está sob ataque de Bolsonaro porque é um sistema muito legítimo, seguro e rápido. Características que servem para evitar manobras e manipulações como a de Donald Trump diante de sua derrota para Joe Biden, nos Estados Unidos. É exatamente isso que Bolsonaro está tentando desacreditar. Este sistema deixará clara sua derrota poucas horas após o fechamento das urnas. Bolsonaro quer voltar a um sistema que era vunerável a fraudes, de contagem demorada, totalizações lentas. Um sistema que aumenta sua posição desfavorável nas eleições.
Há, por causa disto, o risco concreto de que Bolsonaro precipite suas intenções golpistas para antes das eleições, para evitar que sua derrota se revele. Não é que haverá um golpe no dia D e na hora H, como gostam de dizer os militares. O golpe está na rua, ele está em curso. Não é um golpe militar ainda. Pode vir a ser, pode não ser. Basta que Bolsonaro possa, sem consequências, continuar a desobedecer a Constituição e passar a desconsiderar as ordens judiciais para ele se consolidar como autocrata. Já aconteceu com muitas democracias para que se possa imaginar que não há possibilidade de acontecer no Brasil.
(Agradeço o apoio de Afonso Borges e de sua equipe no Mondo Livro na produção deste artigo, baseado na entrevista que dei sobre o assunto para o Headline.)