A política sul-africana Maite Nkoana-Mashabane militou na clandestinidade e depois, com Nelson Mandela, lutou pelo fim do apartheid. Mulher brilhante e firme, não veio ao mundo para brincadeiras. Se está no comando, comanda de verdade. Ela foi nomeada ministra de Relações Internacionais e Cooperação pelo então presidente Jacob Zuma. Em 2011, a África do Sul hospedou a cúpula do clima, a COP 17, em Durban, na província de KwaZulu-Natal. Como era a chanceler, foi ela escolhida para presidir a COP.
Maite comandou para valer. Primeiro, introduziu nas negociações o modelo da Indaba. Indabas são as reuniões comunitárias do povo Zulu, com participação de todos, para discutir questões de interesse geral, resolver conflitos e impasses. Uma roda de conversa que só termina, quando se chega ao consenso. Ela obrigou os diplomatas a uma roda dessas e ficaram quase todo o dia fechados naquela conversação. Encontrei um desses diplomatas no corredor, quando saiu para ir ao banheiro. Perguntei como iam as discussões lá dentro. “Essa mulher é louca”, foi sua resposta. “Estamos quase o dia todo ouvindo os outros falarem, falamos também, mas não há negociação. Ela quer convencimento e consenso, isto não existe em COPs. Existe negociar e fechar acordos.”
Era um choque de culturas. A resposta do diplomata tinha preconceito e machismo embutida. Maite queria que ocidentais pensassem como os zulus. Um sonho impossível. As barreiras culturais e étnicas não são transponíveis num dia. Mentalidades distintas, modelos sociais e políticos diferentes. Maite também não entendia a teimosia dos homens diante de tanta evidência sobre a mudança climática. Os diplomatas não entendiam a fixação de Maite nas indabas, que julgavam um desperdício de tempo.
As COPs se estendem por duas semanas. Na primeira, os técnicos tocam as negociações, que já vêm de reuniões preparatórias ao longo do ano. Os impasses políticos vão sendo deixados entre colchetes, literalmente, tipo [abandonar o uso de combustíveis fósseis até 2035]. Na segunda, os chefes de estado ou governo chegam para negociar politicamente os impasses, retirar os colchetes e fazer pronunciamentos sobre suas visões da questão climática e prestar contas do que fazem para reduzir suas emissões. São situações muitos diferentes entre os 197 países participantes mais a União Europeia representando seus 27 membros. Alguns, como China, Estados Unidos e Brasil, são grandes emissores de gases estufa. Outros, como os estados-ilha do Pacífico — entre eles, Fiji, Tuvalu, Kiribati, Nauru, Samoa, Tonga, Vanuatu — estão ameaçados de desaparecer com a elevação do nível do mar.
No fim de semana entre a reunião de técnicos e a cúpula com os chefes de estado e governo, Maite estava muito irritada com o baixo índice de avanço nas negociações. Determinou que não haveria sessões de negociação durante o fim de semana. “As partes deverão usar o fim de semana para refletir sobre suas responsabilidades”, ela me explicou naquela sexta-feira, 12 de dezembro de 2011. Se os diplomatas, os técnicos e os observadores da sociedade civil não vão ao centro de convenções, nós da sala de imprensa não temos o que fazer. Eu cobria a COP 17 para a CBN. Afra, para o Estado de São Paulo, Dênis, para o G1. Dênis havia alugado um carro. Decidimos ir ao Hluhluwe–Imfolozi Park que ficava há poucas horas de carro, saindo de Durban. Ambos ficavam na província de KwaZulu-Natal.
Chegamos ao parque no final da tarde. Havíamos escolhido uma pousada bem próximo à entrada da reserva que se mostrou muito confortável e toda decorada em estilo safari de muito bom gosto. A pousada cria kudus para abate. O kudu é um lindo antílope de chifres em espiral. Foi o que jantamos no restaurante da pousada. Estava ótimo o jantar. Tomamos um bom vinho sul-africano. Fomos dormir cedo. A portaria chamou às 4:45 da madrugada para um breve café e logo saímos para o parque. Teríamos um breakfast em uma área demarcada para piqueniques já dentro da reserva. Comemos no topo de uma colina, olhando as girafas e zebras pastando no vale abaixo.
O Hluhluwe–Imfolozi fica em um terreno montanhoso, com florestas, campos e savanas e é servido por dois rios Umfolozi o negro e o branco (Mfolozi emnyama e Mfolozi emhlophe) em cujas margens se vê belas matas ciliares, pantanais e vegetação verde densa e perene. Este ecossistema abriga os “big five”, os cinco grandes mamíferos, rinocerontes, elefantes, leões, búfalos e leopardos. Há, também, abundância de antílopes, como kudus, impalas, nyalas. São onze no total. Há zebras, girafas, hienas, cachorros do mato, chacais, guepardos, hipopótamos e vários outros carnívoros. Aves das mais diversas. Um festival de espécies.
Mas tudo que avistávamos estava muito ao longe. Foi o que tivemos para ver durante a primeira hora de safari no Land Rover conversível. O guia de outro safari nos alertou que os leões haviam acabado de caçar e estavam se alimentando sob uma Marula, bem próximo da trilha. A árvore devia ter em torno de 18-20 metros de altura, frondosa, despejava generosa sombra para os animais. O guia acelerou o jipe e, ao sair de uma curva na trilha, deu uma súbita freada. Um enorme rinoceronte branco, adulto, macho, atravessou na pista, impedindo nossa passagem. O ranger engatou uma ré, mas não moveu o carro. Disse para ficarmos quietos porque se ele investisse contra nós, podia virar o jipe e nos pôr em situação de perigo. Fiquei de pé como estava para fotografar o bicho. Era o que eu mais queria e lá estava ele, inteiro para mim.
Não houve aquele momento Ionesco. “Rinoceronte! Corra, venha ver o rinoceronte!” Ele nos surpreendeu de tal forma, que não ousamos falar. Apenas o guia nos alertou do perigo e orientou o que devíamos fazer. Quase ouvi Ionesco sussurrar ao pé do meu ouvido “o medo é irracional, a razão deve vencê-lo”. Bérenguer, o alter ego de Ionesco, diz que “um rinoceronte em liberdade, não é boa coisa”. Como não? Um rinoceronte em liberdade e seguro é das melhores coisas da vida. Como elefantes, ou leões, todos eles. Os donos da natureza, soltos nela, em liberdade, seguros, vivendo seu equilíbrio natural, é o que há de melhor.
O parque, uma antiga reserva de caça, tem hoje a maior população de rinocerontes brancos do sul em toda a África. Tem, também, uma população relevante de rinocerontes negros do centro-sul. Hoje, é o melhor lugar em África para avistá-los. Animais ameaçados de extinção pela atividade dos poachers, que os matam para retirar o chifre e transformá-lo em pó para vender para a China, principalmente. Em alguns locais, extraem o chifre dos rinos para evitar que sejam mortos. Amputados, eles perdem a majestade e o interesse dos turistas. O meu, não. Ostentava um enorme chifre e, como um touro bravo, fazia no ar o gesto de ataque com seu belo chifre em riste para nos ameaçar. Foi um show completo de macheza, demarcando terreno e mostrando que era o mais forte ali e dono do pedaço. Mas ninguém estava disposto a contestá-lo.
Disparei a Nikon com uma lente zoom 70-250mm numerosas vezes, mas sem poder escolher ângulos para a foto, porque a ordem era não me mexer. O rinoceronte é míope. Entende-se, seus olhos são desproporcionalmente pequenos em relação ao tamanho de sua cabeça alongada, medindo 1,5 metro ou mais. A cabeça, esta sim, é proporcional aos quatro metros e tal do corpo. Ele investiria contra o movimento. Eu não me mexia e fotografava os movimentos dele. Tive ganas de me mover várias vezes, mas me aquietei. Quando ele ficou convencido de que não o ameaçávamos, mudou a posição do corpo, deixando-nos entrever a razão de seus cuidados. A fêmea e seu filhote saíram da mata e atravessaram a trilha rumo ao campo que se estendia pelo vale.

Vimos os leões, os elefantes e um búfalo apenas. Toda variedade de antílopes, muitas zebras e girafas. Mas estava feliz com meu troféu fotográfico. Tinha o meu próprio rinoceronte. Ele me custou caro. A súbita parada do jipe, fez com que, no tranco, a câmera com a lente mais pesada batesse no meu olho e me descolasse a retina. Fiquei uma semana sem me dar conta do desastre. Quase perdi a visão. Ao chegar ao Brasil, tive que me operar de urgência e enfrentar torturantes seis meses de recuperação, sem enxergar direito e proibido de ler. Não deixou sequela, felizmente, e não estragou, portanto, o prazer do meu encontro direto com o imenso rinoceronte, em seu ecossistema, do qual era eu o invasor. Ah, sim. O documento final da COP 17 foi aprovado por unanimidade e abriu caminho para o Acordo de Paris quatro anos depois.