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Você tem medo da IA?

Repito a pergunta do título: você tem medo da IA? Eu não tenho. Nunca temi as inovações tecnológicas. Elas nos asseguram que o mundo que desenhamos para o futuro não seja o mesmo, previsível, repetitivo, enfadonho. A mudança é a essência vital da nossa existência. Quando surge uma nova tecnologia que considero pode melhorar minha vida, facilitar o que faço, adoto, analiso criticamente, adapto e sigo em frente. Essas novidades da ciência são nossa melhor bagagem rumo a um horizonte chamado futuro, que nunca alcançaremos. Quando dele nos aproximamos ele se afasta para mais longe. Mudança é travessia. É a travessia que importa. Ela é a vida mesmo se dispondo para nós, real.

Ao adotar uma nova tecnologia, sempre me asseguro de que seguirei como sujeito de minha própria história. Sem me render à novidade, deixando que ela me domine. Eu não me entrego não. Resisto, armado com minha consciência crítica. Mantenho a novidade tecnológica sob meu comando e tento aprender tudo o que posso sobre ela. Tento entendê-la para saber como, quando e para quê usá-la. Sem jamais perder de vista o horizonte móvel que anuncia mais mudança e apresenta a possibilidade do futuro.

Sou um adotante precoce, confesso. Testo a novidade e decido se a quero adotar. Caso afirmativo, preciso entender a novidade que adoto para saber sobre seu alcance e seus riscos. Não tenho medo do novo, mas jamais confio nos seus criadores e operadores. A eles, eu temo. Sei que podem ser perigosos quando são gananciosos e irresponsáveis. Os algoritmos são escritos por seres humanos, sem barreiras éticas ou morais. São armas ou ferramentas. Depende de quem os escreve e de quem os usa. Esses artefatos são sociotecnológicos, seus produtores e seus consumidores são humanos.

A Inteligência Artificial é uma estação repetidora “bem treinada”. Aprende com nossos dados, isto é, com o que fazemos, dizemos, compramos e curtimos online. Pode errar muito, porque também aprende com as nossas fake news, nossos erros e nossos vícios morais. Ela vai gostar do que gostamos, amar o que amamos, repetir nossas ofensas, oferecer os produtos que mencionamos, olhamos, compramos.

No caso de IAs de busca e pesquisa, como um dos ChatGpts, a qualidade das respostas depende da qualidade das perguntas. Eu, por exemplo, quando peço alguma referência ao ChatGpt, especifico que quero fontes credenciadas, avaliadas pelos pares, ou estabeleço as que não quero, tipo evite robôs, fontes sem respaldo acadêmico, fontes únicas, sites, blogs cuja produção e procedência não seja verificável, ou produzidos por pessoas sem capacidade acadêmica ou profissional comprovada nos temas em questão. A precisão dos retornos que obtenho é superior a 90%. A IA, como as redes digitais, pode servir ao bem ou ao mal, depende de quem a escreve e de quem a usa.

Não foi sempre assim com as novas tecnologias? Material nuclear serve para fazer bombas, radiografias e energia. As anfetaminas têm uso médico aprovado e comprovado para várias síndromes. Abusadas recreativamente, viciam e sequelam. O LSD usado como droga pode causar sérios transtornos psiquiátricos. Na medicina, aumentam as evidências que a dietilamida do ácido lisérgico, LSD, é tratamento eficaz e seguro para depressões agudas, crises de ansiedade e pânico, stress pós-traumático, ou alcoolismo.

Quase tudo que nós humanos fazemos serve para o bem ou para o mal. Como os xapiris dos Yanomâmi, espíritos xamânicos que podem curar ou adoecer. Entre os Ashaninka, os manínkary, seres espirituais, podem curar ou matar. Cabe aos sheripari, ou xamãs, estabelecer o diálogo com eles e mediar a relação deles com seu povo. Para fazer essa negociação, os sheripari recorrem ao kamarãpi, que conhecemos como ayahuasca.

Os artefatos sociotecnológicos têm essa mesma propriedade. Podem fazer bem ou mal, tudo depende da relação das pessoas com eles. Essas visões não-ocidentais nos mostram que a lógica desses povos não é maniqueísta, tipo o bem ou o mal. Os espíritos fazem o bem, quando o mapacho, ou tobacco, uma planta considerada muito poderosa pelos Ashaninka, é bem usado. Fazem o mal, quando é mal usada. Depende, portanto das relações que as pessoas mantém com esses vegetais xamânicos. Com os rituais corretos, em doses adequadas, a planta protege o povo contra os maus espíritos e fortalece o corpo. Consumida sem esses cuidados, atrai os maus espíritos, adoece e provoca visões ruins.

Esses artefatos têm sido encarados de forma maniqueísta: ou são maus e constituem um risco existencial, ou são bons e resolvem todos os problemas do mundo. Nem uma coisa, nem outra. Se os olharmos na perspectiva relacional, como os Ashaninka olham suas plantas rituais, veremos que eles podem fazer muito mal quando as pessoas se relacionam com eles de forma criminosa. Podem ser ferramentas muito boas e benéficas, se estabelecemos com eles relação apropriada, voltada para objetivos de comunicação, pesquisa, apoio para o aprendizado. Negá-los ou querer que sejam abandonados seria estiolar o progresso e nos condenar a um mundo puramente analógico, em rápida decadência.

Eles são controlados por agentes privados que rejeitam sua responsabilidade social, diante do elevado impacto que eles têm sobre a vida das pessoas. Por isso precisam ser regulados para assegurar que se submetam ao controle social. Não adianta uma regulação analógica porque estão em mudança permanente e rápida e têm muita plasticidade. Mas seus controladores e programadores são humanos, com nome e endereço conhecidos e podem ser responsabilizados pelas consequências sociais e pessoais decorrentes do mau uso dos artefatos que comandam.