Mistérios andam mesmo soltos por aí. Não lembro quando aconteceu. Lembro onde se passou. Maurício, veterano sociólogo, militava no partidão. Para quem não sabe ou não lembra, partidão é o apelido do Partido Comunista Brasileiro, o PCB. Como uma mãe, acolhia a todos em seu flexível regaço ideológico. Aniversário de 60 anos desse amigo-professor, ele resolveu fazer uma open house. Open house é uma ocasião em que se bebe todas e se come alguma coisa. No caso, havia batida de limão e scotch à vontade e um caldeirão fervia no fogo com um inesgotável caldo de peixe.
A casa ficava cheia e esvaziava. Mas, a cada cheia, sobrava um bocado de gente, que não refluía na vazante seguinte. Este grupo aumentava vegetativamente, melhor seria dizer etilicamente, até que o apartamento começou a oscilar entre cheio e entupido. Lá pela hora do jantar — a porta da casa havia sido aberta ao meio-dia em ponto — a maré de gente enchia, mas não vazava. Perto de dez da noite começou uma confusão no escritório de Maurício, decorado com peças indígenas do Espírito Santo, dois facões de mato cruzados fixados numa parede, duas lanças, também cruzadas, em outra. Na estante, uma estatueta de Nanã, segundo ele, o “símbolo mítico da sabedoria”. Eu, ainda estudante, mas não de todo ignorante e sabia que se tratava de um orixá das águas, da sabedoria. Tudo a grosso modo, na ignorância, que parecia mútua, sobre as religiões afrobrasileiras.
Só muitos anos depois, lendo Djamila Ribeiro, uma devota de Nanã, eu ficaria sabendo melhor sobre esta senhora no candomblé. “Nanã é a senhora dos pântanos, dos mangues e do barro primordial. Ela é realmente uma senhora, pois é a mais velha de todas as orixás e, como tal, representa a sabedoria ancestral e a paciência de quem, em um sorriso, carrega todos os mistérios do mundo”, escreveu na Folha de São Paulo. Mas, naquele tempo, para quase todos de minha convivência, os orixás eram deuses atemorizantes de uma negra religião, com ritos exóticos. Em outras palavras, interpretávamos aquele universo, para nós desconhecido, com os preconceitos e a visão da casa-grande, não o conhecimento dos terreiros.
O breve tumulto se dera porque alguém havia traçado o ponto da pomba-gira no escritório materialista e muitos convidados se afastavam de lá, com medo do que poderia acontecer e numerosos outros acorriam ao escritório curiosos de ver. Maurício olhava para a porta do escritório, apreensivo, e tome cachaça com limão e açúcar. Mistura que, como todos sabem, inebria de forma irresistível.
Fui até o escritório e vi o que parecia um símbolo desenhado no assoalho a giz. Voltei e contei a Maurício. Perguntei, com certa ironia juvenil, se ele tinha medo de macumba. “Nem medo, nem crença. Não temo, nem acredito… mas respeito”, respondeu. Depois, eu entenderia esta frase como uma senha de entrada no metauniverso do preconceito. Naquele dia, incrédulo, achei graça.
Horas tantas, de preocupação e bebedeira de Maurício e todos os seus convidados, houve novo tumulto. Eu, claro bebi sem parar do scotch disponível, White Horse, de preço menor porque corria a lenda de ser o mais fácil de falsificar. Este, aparentemente, legítimo, não me fez mal. O uísque escocês se impunha porque não gosto de açúcar na bebida.
A nova confusão foi mais grave. Houve mais temor do que curiosidade. Como a causa se encontrava dentro do escritório, Maurício só se certificaria do problema se lá entrasse. Mas ele permanecia no mesmo lugar, desde o anúncio da pomba-gira, apreensivo e cada vez mais bêbado. “Tem um exu lá dentro”, me disseram quando fui averiguar se passava. Naquele tempo eu nada sabia de cultos afrobrasileiros e a a ideia de Exu como a própria imagem do demônio na macumba era uma invenção branca e colonial. Voltei a contar a Maurício e ele se inquietou ainda mais. Maurício tinha medo, mas não era homem de confessar o que sentia.
Hoje, aprendi muita coisa que não sabia sobre Exu, também com Djamila Ribeiro. Em crônica, homenageando nosso comum amigo, Ignácio de Loyola Brandão, escreveu sobre “o itã de Exu que engoliu todas as coisas do mundo e vomitou-as depois, dando-lhes sentido em tudo. Exu é o orixá da comunicação e somente por meio dele podemos acessar os outros orixás.” Itã é uma narrativa mitológica, como sabem. Mais adiante, Djamila esclarece que Exu abre caminhos e transforma encruzilhadas em possibilidades. É o guardião das ruas, dos caminhos, das estradas. Exu é a vida em metamorfose, escreveu Paulo Petronílio Ribeiro. Também é, malandro, confusão. Exu é dinâmico, contraditório, imprevisto. Luiz Antonio Simas diz que “Exu é o dono do tempo porque ele é a própria encruzilhada: lugar onde passado, presente e futuro se cruzam.”
Mas naqueles tempos que se foram, dominava o Exu-demônio. Em outras palavras, a mentalidade da casa-grande nos assombrava, hegemônica. Foi a casa-grande quem demonizou Exu. Maurício, o comunista, estava cada vez mais preocupado e seus olhos deviam estar doendo de tanto olhar para a porta do escritório de esguelha, o rosto cada vez mais vermelho, a camisa mais empapada de suor, a respiração bufante. Eu temia que caísse em coma alcoólico. Num repente, disparou rumo ao escritório, expulsou todos os que estavam lá e me pediu para vigiar a porta.
Tirou os dois facões da parede e começou uma dança agressiva, aos berros, trançando os facões pelo ar, enquanto murmurava uma ladainha que podia ser reza, mas podia ser um falatório de bêbado. Ele rodava, cada volta mais rápida, os facões brilhando e rasgando o ar ameaçadores. Os olhos esbugalhados se fecharam, e Maurício desabou no chão, desacordado.
Os convidados, diante daquela cena etílico-bailarina, começaram a vazar do apartamento. E ficamos só nós dois. Preocupado, não sabia se chamava uma ambulância ou tentava ressuscitar Maurício. Comecei a sacudi-lo com força. Ele abriu os olhos vermelhos e bradou “me deixa dormir, porra!”.
Deixei o escritório, saí do apartamento, fechei a porta e fui para casa. Dois dias depois, ao encontrá-lo na universidade, perguntei se estava tudo bem. “Tudo certo, não acredito nessas coisas, nem tenho medo delas. Só respeito. Mas tive uma ressaca monstruosa.”
Agradeço os valiosos comentários de Bianca Santana e Jeferson Tenório.